A virada acadêmica de Hilda Hilst

Os estudos de Hilda Hilst se estendem a quase todas as unidades federativas brasileiras
Ilustração: Dê Almeida
30/06/2018

Tenho em mãos os dados completos da fortuna crítica de Hilda Hilst levantados pelo arquivista Cristiano Diniz, do Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (Unicamp), onde se encontra o acervo pessoal da autora. Exaustivos, mostram que, de 1949 a 2017, foram produzidos a respeito da sua obra 209 capítulos e livros; 782 artigos em periódicos, jornais e revistas; 88 entrevistas e 184 trabalhos acadêmicos, entre monografias, dissertações e teses, num total geral de 1.263 referências. Como são muitas e o espaço limitado, vou me concentrar aqui nas que dizem respeito aos trabalhos defendidos em bancas acadêmicas.

A primeira constatação é que os estudos de Hilda Hilst se estendem a quase todas as unidades federativas brasileiras, tendo, contudo, uma maior incidência em São Paulo, o que é previsível, dado ser o estado de origem de Hilda e também aquele com maior produção universitária. No entanto, a recepção paulista é quase igualada pela mineira, e, apenas bem depois das duas, surgem por ordem decrescente os seguintes estados: RS, RJ, SC, DF, CE, GO, MS, PR, ES, PB, RN, PE, SE e RO. Em termos internacionais, vêm os EUA em primeiro lugar e depois, com número igual de referências, Portugal, França, Espanha e Chile, o que mostra a ainda incipiente penetração da obra em todo o mundo e especialmente na América Latina. Não surpreende, visto que a máquina acadêmica nos EUA e Europa é muito maior do que nos demais sítios, e que ainda são poucas as traduções e publicações estrangeiras da obra de Hilda.

No que toca às áreas de conhecimento onde se situam as monografias, dissertações e teses, há outro dado bem previsível: a maioria absoluta dessa produção acadêmica se deu no interior das Letras. No entanto, há também um número inesperado: longe de se reduzir às Letras, há trabalhos sendo produzidos, por ordem quantitativa decrescente, em Linguística, Artes Cênicas, Ciências Sociais, Psicologia, Educação, Filosofia, Medicina, Jornalismo, História e Artes Plásticas. Hilda contaminou todo o espectro das Humanidades e até o está extrapolando para as áreas médicas.

O dado seguinte que poderíamos considerar nesta aproximação dos dados colhidos por Cristiano Diniz se refere aos gêneros literários mais contemplados pela fortuna crítica de Hilda, uma vez que a autora cultivou poesia, prosa de ficção, teatro e crônica. No que diz respeito aos trabalhos acadêmicos, os dados confirmam a predominância já patente na própria grandeza interna da produção de Hilda: prosa de ficção e poesia dominam largamente os estudos, vindo, em seguida, teatro e, em proporção ainda menor, crônica.

Em relação ao tempo da produção dessas referências acadêmicas há uma constatação cabal: até 2001, o número anual delas ficava entre uma e, no máximo, duas, sendo que, na maioria dos anos, sequer havia trabalho acadêmico sobre a obra de Hilst. A mudança sensível se dá a partir de 2002, quando esse número sobe para inéditos três, e no ano seguinte dobra para seis. A partir de 2008, a subida muda de patamar, para treze ou mais, sendo que em 2012, chega ao pico (até agora) de 17 dissertações ou teses anuais sobre ela — mais de uma, não por ano, mas por mês!

Que fatores intervieram para gerar essa mudança notável na absorção acadêmica de Hilda Hilst? A primeira constatação é que o lançamento das obras pornográficas, nos dois primeiros anos da década de 90, aumentou muito a repercussão de sua obra na imprensa, mas teve pouca influência no aumento de teses e dissertações dentro das universidades. Ou seja, foi mais um fenômeno midiático, sem grande repercussão na densidade da produção acadêmica a respeito da obra. A autora ficava bem mais conhecida, mas não crescia a recepção crítica de seu trabalho. A mudança ocorreu mesmo a partir de 2002-2003.

A questão então é saber: o que aconteceu nesse período crucial? Dois acontecimentos — um alegre, outro triste — saltam aos olhos: a disponibilização e distribuição sistemática das obras completas de Hilda Hilst, sob os cuidados de uma grande editora do mercado brasileiro, e a morte da autora já no início de 2004. A coleção das suas obras pela Editora Globo foi dirigida por mim, de 1998 até 2008, mas o seu primeiro volume (A obscena Senhora D) apenas veio a público em 2001. Até então, as obras de Hilst se restringiam a edições quase artesanais, algumas muito bonitas, como aquelas sob os cuidados do extraordinário Massao Ono, mas feitas com poucos recursos econômicos e sem capacidade de distribuição nacional. Tampouco havia aparato crítico acompanhando os livros, isto é, material que ajudasse a ler ou a interpretar as obras, algumas delas bem radicais em sua invenção. Com a edição das Obras reunidas, pela primeira vez, os livros de Hilda alcançavam tiragens razoáveis, estavam disponíveis nas livrarias comuns, atingiam grande parte do território nacional, e traziam consigo um inédito material crítico — cronologia, bibliografia, notas, ensaios, iconografia etc. — pensado justamente para favorecer uma recepção qualificada.

Mas algo mais profundo aconteceu para Hilda Hilst virar esse fenômeno acadêmico, e não apenas midiático ou editorial. O primeiro fator relevante, para mim, foi o enfrentamento crítico da doxa nacionalista e sociológica vigente no Brasil, cujo foco teleológico estava todo posto sobre o modernismo paulista. Enquanto era assim, a discussão literária e a eleição dos seus autores centrais dependiam sempre da submissão a critérios como os de valor nacional, registro linguístico informal, perspectiva laica e racionalista, engajamento político e perspectiva ética edificante. Se dependesse de qualquer um deles, Hilda Hilst não passaria no vestibular da universidade, ou do chamado cânone literário brasileiro. Só quando esse debate teórico ganhou corpo nas universidades brasileiras, a barragem modernista começou a fazer água e por ela passou, entre outras novidades, boas e más, a inundação hilstiana.

Um aspecto que deu força a esse enfrentamento crítico veio da tardia, porém vigorosa entrada no Brasil dos estudos culturais. Pessoalmente, não estou me alinhando a eles: estou apenas tentando interpretar a virada crítica em relação a Hilda. O certo é que, no início dos anos 2000, os estudos culturais já aparecem de maneira abundante na cultura universitária brasileira, cada vez mais maleável aos movimentos internacionais do capital simbólico, sejam eles marolas ou não. Com os estudos culturais, vieram as investigações sobre as minorias, e, em particular, os estudos de gênero, que renovaram o interesse pela literatura produzida por mulheres.

Eu diria, portanto, que uma tempestade perfeita, composta ao menos por cinco elementos heteróclitos, de valor diverso e sem nexo necessário entre si, levou Hilda Hilst ao centro da discussão literária no Brasil, quais sejam: a boa edição; a ampla disponibilidade de sua obra no mercado nacional; o debate travado em torno da absolutização da teleologia modernista; o avanço crescente dos estudos de gênero no mundo e no Brasil; e, enfim, a própria morte da autora, a qual, assim, deixava de manifestar a sua presença indômita, sempre surpreendente e incômoda, que não animava os acadêmicos a se aproximar de sua obra.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho