O bebê está morto

"Canção de ninar" explora as tensões de classe, raça e gênero no caso de uma babá que assassina os filhos da patroa
Leïla Slimani, autora de “Canção de ninar”
30/06/2018

Canção de ninar não é apenas romance de suspense sobre a babá perfeita que mata as duas crianças pelas quais era responsável, mas também, e talvez principalmente, uma análise das tensões de classe, raça e gênero que se instalaram nas sociedades ocidentais. A autora franco-marroquina Leïla Slimani apresenta, logo na primeira página, a sanguinolenta morte de Adam e Mila, filhos dos Massé, e, a partir daí, se dedica a estudar que motivos levaram a preceptora Louise, branca, engomada, francesíssima, a destruir a família da patroa Myriam, cuja ancestralidade o livro deslocaliza em algum país mulçumano do norte da África. O embate entre Myriam, advogada, independente, e Louise, solitária, afundada em dívidas, se é que há algo como um embate, nunca se dá de maneira frontal. As duas mulheres não são polos opostos, antípodas simétricas. Elas compõem o universo da mulher, que, em tantos sentidos cruel e interdependente, está sempre prestes a desmoronar, como parece afirmar Slimani.

Na trama, o privilégio de poder manter-se junto aos filhos e acompanhar-lhes o crescimento sob seus cuidados, como soava ser a ideia inicial, é logo devorado pelo tormento. O pequeno apartamento da rua d’Hauteville, décimo arrondissement — bairro de classe média de Paris — fica ainda mais sufocante com a chegada de Adam. Myriam tinha vontade de “estrangular as [mulheres] que diziam admirá-la ou, pior, invejá-la. Não suportava mais ouvi-las se queixar dos seus trabalhos, de não ver os filhos o suficiente”. Então, quando um antigo colega de faculdade lhe oferece emprego num escritório de advocacia, urge procurar alguém que olhe pelos pequenos. Na agência de emprego, pensam que é ela que quer se candidatar a uma vaga. Por isso desgostou da gerente pela “hipocrisia […]. Seu racismo, evidente à primeira vista”. Decidem resolver a situação por conta própria. E resolvem. Louise teve uma interação total, única, sobrenatural com os meninos, passando confiança absoluta aos pais. Ela é a real protagonista da história.

Myriam e Louise afundam nos respectivos trabalhos: a primeira sai cedo, volta tarde, dedicada e estafada; a segunda também. A diferença entre as duas funcionárias é que só Myriam regressa para a casa após o expediente. Exceto a família Massé, ou seja, os patrões, Louise não tem ninguém. O marido morreu há anos, a filha sumiu sem dar satisfações, os vizinhos são uns desconhecidos. E, além disso, o apartamento, alugado a um proprietário intransigente, tem problemas no piso do banheiro, muitas infiltrações, e situa-se do outro lado da cidade. Não é um lar. “A solidão se revelou como uma fenda imensa em que Louise se viu afundar”, conforme explica a autora. É óbvio, portanto, que a disfuncionalidade da esfera laboral, a qual submete e massacra, às cegas, filhos de imigrantes e europeus, tem em Louise, contudo, componente muito mais excruciante pelo contumaz vazio da existência. Não sabe o que fazer com o tempo livre. A certa altura da obra, num fim de semana em que os empregadores viajam, ela vai ao apartamento deles de qualquer jeito. Ócio é solidão e desgraça. Quando, noutro momento, lhe perguntam o que gosta de escutar, ela “se dá conta de que nunca ouviu música. Nunca teve vontade”.

Autômato que ri
A vida amarga e o trabalho desumano (que em muitos casos tem menos a ver com condições do ambiente que com uma perspectiva pessoal) ajudaram a brutalizá-la a tal ponto que ela só pode ser definida como uma espécie de autômato que ri. Todos a idolatram, mas alguma coisa parece ter se perdido na poeira das ruas para ela. Se se quiser simplificar ao ponto de deixar o raciocínio errado, pode-se equivaler penúria financeira à superficialidade da substância espiritual da personagem; mas a verdade é que Louise é como se fosse uma parente de segundo grau do narrador de O estrangeiro, romance do francófono Albert Camus: observa o estado das coisas — e a conta bancária faz muito pouca diferença nesse contexto. A comparação com Meursault se esgota na medida em que Louise está permanentemente perturbada por um incômodo que ela não consegue discernir a contento, embora tente se livrar dele devotando amor pela família. Em todo caso, o Meursault de Camus e a Louise de Slimani, como se sabe, desestruturam e despedaçam esse ordenamento agressivo do mundo quando algo na engrenagem sai do lugar.

A substituição dos valores amorosos da maternidade para as demandas frenéticas da comunidade jurídica não vem à Myriam sem uma culpa pequeno-burguesa, assim como também para Louise a própria vida de genitora se configura, cada vez mais claramente, como uma sucessão de fracassos — é na profissão, e não na maternidade, que ambas se realizam. Quem as desafia são outras figuras femininas. Myriam é esmagada pelas palavras insensíveis da sogra. Diz Sylvie que a nora é “egoísta” por trabalhar demais, julga as crianças como “insuportáveis, tirânicas, caprichosas” por causa dela. “Não teve forças para se defender contra as acusações que sabia serem em parte verdadeiras, mas que considerava como seu fardo, bem como o de muitas outras mulheres. Nem por um instante houve espaço para a indulgência nem para a ternura”. E completa: “Nenhum conselho veio de uma mãe a outra”. É como se Slimani analisasse que a opressão de Sylvie e o acolhimento de Louise, na devoção a Adam e Mila, são constitutivos da experiência materna.

Se do lado de cá do fosso social o problema se resolve com choro, recalque e mais alguns goles de vinho, do lado de Louise o fim é a separação total à filha, Stéphanie. A cena a um só tempo mais constrangedora e explícita sobre o esvaziamento da relação e do papel de mãe se desenrola na reunião que julgará a expulsão da jovem de uma escola de classe média, em que foi matriculada pela ex-patroa como um agradecimento paternalista aos serviços da babá. Diante da banca de professores, a mulher tenta se defender.

Explicou, chorando, o quanto ela cuidava de suas crianças, que ela os castigava quando eles não ouviam. Que ela lhes proibia de ver televisão fazendo a lição de casa. Disse que tinha princípios e uma grande experiência com educação de crianças.

Questionada, ela explicou precisamente a que crianças se referia: às da patroa, claro. E a adolescente foi expulsa. O rompimento, ponto culminante de uma criação ausente por desamor ou imposições práticas do trabalho, se tornou inevitável depois que Louise ainda lhe aplicou uma surra nem bem atravessaram o portão de casa. Nenhum conselho foi de uma mulher à outra.

As dívidas que o marido morto deixou a Louise e a vontade dela por uma nova criança na casa dos Massé não explicam, por inteiro, o crime. Aí está uma qualidade do livro. Os recortes sociológicos estão imbricados às pinceladas psicológicas das personagens, o que dá complexidade à narrativa, mas não seria injusto ler também o texto como um mero romance de detetive, um livro irônico, de puro entretenimento, em que as pistas nunca se afixam como definitivas ou como superioras. O fim já está dado desde o início, e o desfecho, embora fechado, lança perguntas. Evidentemente, não se deu assim na vida real. O caso transcorrido em Nova York, em 2012, ponto de partida para este livro, terminou com a mulher condenada. Talvez pela prazerosa dubiedade gerada pela obra na condução da narrativa, a Slimani tenha sido conferido o prêmio Goncourt, em 2016, o mais prestigioso da língua francesa. Foi apenas a 12.ª vez que uma mulher venceu a distinção literária em mais de 100 anos de história.

Canção de ninar
Leïla Slimani
Trad.: Sandra M. Stroparo
Tusquets
191 págs.
Leïla Slimani
Nascida no Marrocos em 1981, mora na França desde os 17 anos. Jornalista e escritora, ela lançou, em 2014, Le Jardin de l’Ogre, romance sobre uma mulher viciada em sexo. Canção de ninar venceu o prêmio Goncourt e é seu segundo livro.
Alan Santiago

É revisor de textos da UFPR. Já foi repórter nos jornais Folha de S. PauloAgora São Paulo e O Povo. Publicou o livro de contos A lua de Ur num prato de terra (2009, 7Letras)

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