Planos possíveis

Entrevista com a portuguesa Ana Teresa Pereira, ganhadora do Prêmio Oceanos
Ana Teresa Pereira, autora de “Karen”
26/05/2018

A portuguesa Ana Teresa Pereira — sob a perspectiva de que o plano racional é apenas um dos planos possíveis — oferece ao leitor nesta entrevista associações e aproximações por vezes oblíquas. A espontaneidade com a qual responde às perguntas, como se estivesse a criar ou relembrar outras histórias, à volta da história original, dá-nos pistas sobre seu trabalho e sobre o que lhe inspira.

• O esquecimento é por excelência o recurso humano para dar conta de sobreviver?
Por vezes, tudo começa com uma imagem. Há muitos anos, na primeira página de um livrinho policial de bolso, encontrei uma imagem que nunca esqueci: três crianças a brincarem no jardim de uma velha casa. O jardim está cheio de nevoeiro e elas tentam ver fantasmas nas janelas da casa. E dessa imagem, dessa meia página de um livro, nasceram os contos Numa manhã fria, O fim de Lizzie, O sonho do unicórnio, Neverness. As personagens são sempre as mesmas, dois rapazinhos e duas meninas gémeas, a casa e a charneca [habitat caracterizado por vegetação de solo seco, típica de Portugal] à volta são as mesmas, há parágrafos iguais. O narrador é sempre o mesmo, mas não estamos a ler a mesma história — a certa altura há algo que muda, pode ser uma pequena coisa, e já estamos numa realidade diferente. Lembro-me de um verso de Manoel de Barros: “repetir, repetir até ficar diferente”. As personagens continuam obcecadas por aqueles dias de nevoeiro e umas com as outras: não amam mais ninguém, as suas identidades confundem-se (talvez, o tempo todo, só existisse um rapazinho e uma menina), e voltam sempre à velha casa onde tudo começou. É como se o narrador esquecesse o que aconteceu na história anterior e começasse de novo, porque talvez com algumas diferenças as coisas possam dar certo.

• Os amores que cultivamos reeditam os amores que abandonamos?
E quando amamos, repetimos também uma história original? E será que o outro existe mesmo? Ou é uma parte de nós que projectamos noutra pessoa (qualquer pessoa)? Há um filme de David Cronenberg que é um verdadeiro tratado do amor narcísico: M. Butterfly. Quando a imagem se quebra e vemos a pessoa como é na realidade, é o fim do amor. Talvez amar seja simplesmente reconhecer a existência de alguém exterior a nós. Não um reflexo fiel ou distorcido, mas uma pessoa real.

• Obsessões podem, às vezes, sustentar uma identidade? Qual o papel da dúvida e do equívoco na construção do que é ser uma mulher?
Creio que a procura da identidade está presente em muitos dos meus livros. Em Inverness, um escritor contrata uma actriz para se fazer passar pela sua mulher, que desapareceu sem deixar rasto (ou talvez ele a tenha assassinado.) Durante algum tempo, ensina-lhe o papel que tem de representar, os gestos, as roupas, os gostos; ensina-lhe como é a casa, para que ela possa mover-se lá dentro com toda a naturalidade. Quando encontramos a mulher na casa, no jardim, não sabemos quem ela é — e talvez ela também não o saiba. Em O lago, um dramaturgo e encenador escolhe uma actriz desconhecida para representar o papel principal da sua peça. Mas é numa casa isolada que prossegue o trabalho de transformá-la na sua personagem, e vai tão longe que a transforma quase num “revenant”, alguém que volta do vazio para representar durante duas horas, sem saber porquê, sem saber quem é. Recentemente, escrevi um conto em que a situação se repete, mas agora o mais importante são as recordações de infância — se mudarmos a memória da infância de alguém, será que o transformamos noutra pessoa? E qual é a importância das pequenas coisas? No princípio de um livro que li em criança, uma rapariga perde-se no nevoeiro, ao voltar para casa. Está numa cidade, mas poderia estar num bosque ou numa charneca. Já anoiteceu, não passam autocarros, não há ninguém nas ruas. E então vê uma loja aberta. Uma velha loja com objectos náuticos. Mas na montra, entre cordas e bússolas, há uma caixinha que contém um anel com uma pedra azul. Uma água-marinha, talvez. Ela confere o dinheiro que tem na bolsa e entra. Quase não me lembro do resto do livro. Mas escrevi muitas vezes a história da rapariga que se perde no nevoeiro e vê uma loja aberta. Por vezes é uma livraria. A história é sempre diferente, mas nunca inteiramente satisfatória. Ainda não sei o que se esconde no fundo da loja. E claro que ao longo dos anos comprei muitos anéis com pedras azuis, águas-marinhas ou vidro, não tem importância.

• Todos temos um traje cotidiano e um traje de baile quando o assunto é dizer de quem somos? De que maneira a inveja pelas habilidades humanas que não desenvolvemos pode se tornar uma potência?
Tão importante como a identidade, é a atracção pela metamorfose. Uma das ideias iniciais de Karen era a existência de duas realidades. O desafio era que as duas fossem impossíveis. Se a narradora é Karen, por que motivo o cão não a reconhece? Se ela é uma pintora que vive em Londres, como é que não sabe desenhar? Talvez a noite em que está mais próxima de si mesma, em que quase atinge a unidade, seja aquela em que usa o vestido vermelho. A ideia de que há outras possibilidades, de que podemos ser outras pessoas, não deixa de ser fascinante. Como um actor que procura as partes de si mesmo que correspondem à personagem que quer interpretar (mesmo o fascista ou o santo, diria Orson Welles); como tocar teclas de um piano que tínhamos ignorado até então.

“Quando falamos retrospectivamente do acto criativo, estamos sempre a racionalizar. Podemos procurar momentos, imagens, mas o que se passou ficará sempre envolto em mistério.”

• A paixão, tanto ou mais que o amor, é um sentimento capaz de nos situar no mundo? É possível se relacionar com o desejo do outro sobre nós sem questionar por quais outros corpos esse desejo transita?
(Continuando a falar de Karen) A rapariga que vive em Londres, que está apaixonada pelo mundo que a rodeia, pela pintura, pelo seu gato e pelo velho dono de uma galeria, é talvez uma pessoa mais “inteira” que a jovem apaixonada pelo marido, pela velha casa, por uma queda de água. Mas a mulher que espera sozinha na casa pelo homem que ama, que espera sempre, que esconde a sua beleza porque no fundo não tem importância, é também definida pela sua paixão.

• Há ponto de convergência possível entre o que as pessoas significaram em nossa vida e a apreciação que fazemos disso? A frustração é coisa que tem mais a ver com o desejo de desempenhar papéis impossíveis ou com a impossibilidade de desejar os papéis possíveis no cotidiano e nas relações?
Só quando o livro estava quase inteiramente formado, descobri a natureza de Alan. No princípio era uma figura muito vaga, via-o fisicamente como Alain Delon, mas quase não sabia nada dele. Foi quando comecei a vê-lo a sair de casa todas as manhãs com o seu cão, a vê-lo em países do Norte a caminhar na neve durante horas para comprar comida, a ajoelhar-se junto a uma nascente para beber água, que aprendi a conhecê-lo. E a amá-lo, com aquele amor incondicional que um autor deve ter pelas suas personagens. A compreender os seus motivos. E se é capaz de matar para fazer aquilo que o apaixona, continuo a compreendê-lo.

• A possibilidade de experimentar um olhar distanciado do núcleo familiar é fundamental para a construção da própria identidade? Qual o papel do estranho/estrangeiro em nossa leitura de contexto?
Segundo Jaan Kaplinski, o lugar onde encontramos as “nossas” plantas, é o nosso lugar. Uma charneca cheia de urze [espécie de arbusto], por exemplo. Quando algo em nós rejeita as plantas que nos rodeiam, chegou a altura de irmos embora. Penso que acontece o mesmo em relação às pessoas. Duas pessoas que amam o mesmo filme (um velho filme que mais ninguém conhece) estão ligadas para sempre. Pode ser um livro, um quadro, uma música. Uma planta, um animal. Uma ligação muito funda, uma corrente subterrânea, mais intensa do que o mundo visível.

“E quando amamos, repetimos também uma história original? E será que o outro existe mesmo? Ou é uma parte de nós que projectamos noutra pessoa (qualquer pessoa)?”

• A presença de uma queda d’água na obra, entre outras analogias possíveis, remete o leitor a uma espécie de cortina — pode-se dizer que nos corredores que contornam a cena, nas coxias, e no que está fora da vista do espectador é que a protagonista conta a sua história?
Quando falamos retrospectivamente do acto criativo, estamos sempre a racionalizar. Podemos procurar momentos, imagens, mas o que se passou ficará sempre envolto em mistério. Creio que a primeira imagem foi a da queda de água. Depois a ideia (tão recorrente em policiais e filmes de série B) de alguém que acorda num quarto desconhecido e não sabe o que lhe aconteceu. Atravessar uma queda de água ou uma cortina de chuva e transformar-se. E tudo o que acontece pelo meio. Sem esquecer o que se passa nos bastidores, e talvez seja a verdadeira história — porque este livro foi escrito pelo lado de dentro. E as inevitáveis feridas. E as cicatrizes, que talvez sejam marcas necessárias para chegarmos a ser aquilo que realmente somos.

• Durante a leitura de Karen, temos em certos momentos a impressão de estar dentro de um filme. É possível afirmar que a obra, para além de algumas referências diretas, possui uma relação próxima com a linguagem do cinema?
Suponho que há em mim algo de realizadora de cinema. Gosto de conhecer bem os meus actores: neste caso, Audrey Hepburn, Alain Delon, uma actriz inglesa de séries de TV e, misteriosamente, Alberto Giacometti. Precisei de encontrar a casa, os cantos, os cortinados, as vistas das janelas; os bosques e a vila junto ao mar. Há velhos filmes a preto e branco, filmes de série B que quase ninguém conhece, que me influenciaram tanto como os livros de Henry James, Borges, Iris Murdoch, Cornell Woolrich. Há nesses filmes uma linguagem (a realidade é a cores, mas o preto e branco é mais realista, disse Samuel Fuller), que podemos aprender com o tempo — se o merecermos. Em Karen há muitas cores mas, se repararmos bem, algumas partes são a preto e branco.

*Nesta entrevista, realizada por e-mail, optou-se por manter a grafia vigente em Portugal.

>>> Leia resenha de Karen

Andressa Barichello
Rascunho