De malas prontas para o Rio

Autora americana se inspira em Clarice Lispector para produzir um romance água com açúcar
Idra Novey, autora de “A arte de desaparecer”
26/05/2018

Em um parque decadente numa área decadente de Copacabana, uma mulher parou debaixo de uma amendoeira com uma mala e um charuto. Era uma mulher roliça com um tufo de cabelos grisalhos presos na nuca. Depois de observar a árvore por um minuto, ela mordeu o charuto, levantou a mala até o galho mais baixo, e escalou a árvore.

O começo do romance A arte de desaparecer, o primeiro da americana Idra Novey, parece promissor. Mas não se engane: se há algo interessante no começo — uma situação um tanto irreal, uma insinuação de um realismo mágico — é muito sutil e passa rápido.

A personagem do início é Beatriz Yagoda, uma autora que nasceu na África do Sul e veio para o Brasil quando tinha apenas dois anos de idade (a personagem, segundo Novey, é inspirada em Clarice Lispector — ainda que caiba dizer aqui que o livro não se pretende uma não-ficção nem um roman à clef). Depois da cena do parque, a autora desaparece, e resta ao leitor acompanhar os filhos e a tradutora de Beatriz enquanto eles a buscam.

Ainda que o sumiço de Beatriz seja a questão central da narrativa, há pouco dela na obra. Sem querer revelar mais do enredo do que o necessário, resta-me dizer que suas cenas são breves e sua voz é apagada. O que fica é a imagem que os filhos, a tradutora americana e outros personagens secundários têm dela — apenas uma sombra, ou algumas perspectivas das verdades que se encerram em uma pessoa.

A partir de seu desaparecimento, a narrativa assume principalmente a perspectiva da sua narradora americana. Emma Neufeld, ao saber da notícia, larga sua pacata vida numa cidade fria dos Estados Unidos para sair de um avião no meio do verão carioca, acreditando que seu conhecimento sobre a escrita da autora possa ser útil, de alguma forma, nas buscas. Emma encontra então Raquel e Marcus, os filhos de Beatriz, e logo se sente deslocada — Raquel não a suporta nem entende sua presença no Brasil.

Apresentadas as personagens, o enredo descamba em um misto de aventura e comédia romântica digno de Sessão da Tarde. A heroína — Emma — é jogada no meio de uma investigação (sem que tenha nenhuma experiência nisso) e se mostra quase uma detetive nata. Além disso, creio que a história da heroína que começa seu arco narrativo desconfortável com o estado da sua vida, principalmente com um relacionamento errado, soa bastante familiar. Um pequeno desvio do padrão da sua vida é o suficiente para que ela sinta a emergência de fazer algo incomum e, enquanto isso, descubra o homem dos seus sonhos (e no início ela reluta a admitir isso, claro).

Emma está encaixada em todos esses clichês (há, inclusive, um suposto agiota carioca que, pela sua caracterização, mais parece um gangster americano. Sem contar que se descobre que a autora desaparecida é viciada em jogos). De detetive a moça dividida entre dois homens, ela se encaixa na visão mais comum de uma história americana. Há, talvez, um toque de intelectualidade: além dos dois caras, ela se divide em duas línguas, dois países, duas culturas.

O primeiro romance de Novey tem uma estrutura muito fechada, presa e previsível. Ainda assim, sua escrita tem alguns momentos inventivos que devem ser mencionados. Por exemplo: espremidos entre os capítulos curtos da narrativa, estão algumas entradas textualmente diferentes. Trechos de narrações de rádio com notícias da escritora, e-mails dos familiares da tradutora buscando saber notícias suas e entradas de dicionários buscam uma nova forma de contar a história.

Inventivas
E chamo a atenção particularmente para as entradas de dicionário: são inventivas e lindas maneiras de conectar uma história de uma autora e uma tradutora. Dou um exemplo:

Entre: preposição. 1. Pela ação comum de <entre os dois>, mas também para designar uma diferença, uma distância <entre a autora e seu filho>. 2. Empregada para indicar um intervalo <entre um breve túnel no Rio e a distante Pittsburgh de seus gatos>.

Essas entradas de “não-ficção” no meio do livro conseguem fazer com que a narrativa saia um pouco da sua obviedade. Em alguns momentos, cheguei a me perguntar qual teria sido o resultado do livro caso a autora tivesse investido mais em saídas assim.

Novey mostra também um uso interessante da perspectiva na narração. Ainda que a maior parte do livro acompanhe Emma, Novey sabe escolher bem os momentos de mudar isso. Um dos momentos em que isso fica mais evidente é no final do livro (e a vagueza aqui será proposital): um diálogo conclusivo entre duas personagens é narrado do ponto de vista de um observador distante, que sabe pouquíssimo sobre as personagens em questão. O leitor nunca sabe realmente o que é dito (como o cena final de Encontros e desencontros, em que o personagem de Bill Murray cochicha algo para a personagem de Scarlett Johansson). Um pequeno silêncio que acrescenta várias camadas para a narrativa.

Em uma entrevista para a revista Época, Novey explica que sua opção por situar o livro no Brasil está longe de ser uma escolha aleatória — a cultura do país se tornou uma grande influência na sua vida quando ela ainda era nova e sua família recebeu um intercambista brasileiro. “Eu morava numa região rural, muito devagar, onde não acontecia nada. E aí chegou um hermano do Brasil trazendo o samba, a Bossa Nova, a feijoada! Foi maravilhoso”, contou.

Depois dessa introdução, Novey conheceu a literatura de Clarice Lispector em uma disciplina sobre literatura experimental de escritoras latino-americanas na faculdade. A experiência a marcou profundamente — tanto que ela resolveu aprender português para ser capaz de ler a obra na língua original. Por fim, em 2012 foi responsável pela tradução de A paixão segundo G. H. para o inglês.

A verdade é que A arte de desaparecer, publicado nos EUA em 2016, foi bem recebido por lá. O livro chegou a entrar nas listas dos mais vendidos e venceu vários prêmios. A questão é que o cenário brasileiro e a referência a uma autora brasileira em alta no exterior pode ser o suficiente para agradar os leitores americanos, mas tenho dúvidas se o livro se sustenta para um público brasileiro.

A paixão de Novey por Lispector, pelo Brasil e pelas palavras fica evidente em seu livro e sua inventividade é charmosa em vários momentos. Ainda assim, o romance não se destaca o bastante.

Beatriz, a personagem que ronda o livro inteiro, parece ser a figura mais interessante. Ainda assim, é pouco explorada — ainda que faça parte do mistério do livro que os outros personagens não a conheçam tão bem e descubram facetas dela aos poucos, todo seu charme fica de lado e, sem muitas revelações, seu mistério também é abafado. Mesmo o drama das outras personagens é abordado superficialmente.

A própria Emma é uma personagem rasa, tão parecida com qualquer outra americana típica de narrativas americanas. Além disso, a imagem que a autora tenta mostrar do tradutor como um investigador das palavras é até bonita, mas também muito inocente. A personagem parece acreditar até o fim que a grande verdade se esconde atrás das linhas, algo que não podia ser mais distante da realidade de um tradutor, que lida o tempo todo com as muitas verdades de um texto.

Há algo interessante em Novey sim. Existem bons momentos, boas saídas, boas inspirações. Mas a história se encaixa em tantos padrões já conhecidos que pouco dela é memorável em um mar de semelhanças.

A arte de desaparecer
Idra Novey
Trad.: Roberto Taddei
Editora 34
272 págs.
Idra Novey
Nasceu na Pensilvânia, nos EUA. Estudou na Universidade de Columbia e fez mestrado em escrita criativa. Atualmente mora em Nova York, mas já teve endereços no Chile e no Brasil. Já publicou três livros de poesia e traduziu para o inglês obras da Clarice Lispector, Paulo Henriques Britto e Manoel de Barros.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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