Narrativa menor

Apesar dos bons diálogos, a leitura de "O feijão e o sonho", de Orígenes Lessa, acaba com um forte sabor de incompletude
Orígenes Lessa, autor de “O feijão e o sonho”
29/04/2018

Quando Orígenes Lessa publica O feijão e o sonho, em 1938, seu destino já pertence à literatura: fora aclamado por nomes consagrados da época, como Menotti del Picchia e João Ribeiro, ao lançar, em 1929, uma primeira coletânea de contos, O escritor proibido; a segunda, Garçon, garçonete, garçonnière, recebera menção honrosa da Academia Brasileira de Letras; preso durante a Revolução de 1932, lutando ao lado dos paulistas contra a ditadura de Getúlio Vargas, as duas obras escritas na prisão — Não há de ser nada e Ilha Grande, jornal de um prisioneiro de guerra — fizeram sucesso e são, até hoje, relatos confiáveis de aspectos do movimento constitucionalista. O ganha-pão, contudo, era o trabalho de redator publicitário, como o próprio Lessa confirma a Edla van Steen (na entrevista publicada em Viver & escrever, volume 1): “Quase tudo que escrevi entre 1930 e 1960 foi em tempo alugados aos patrões, no meio de anúncios de automóvel, de inseticida ou de cremes dentais”.

Infantilismo e literatura
O protagonista de O feijão e o sonho é o escritor José Bentes de Campos Lara, a quem a esposa, Maria Rosa, chama de Juca. O romance inicia com as imprecações da mulher, desorientada no dia a dia massacrante, “de pé às cinco da manhã” para cuidar das tarefas da casa, dos filhos e da sala de aula contígua à residência. Seus resmungos, gritos e gestos bruscos, enquanto Campos Lara dorme, apesar de ser quase meio-dia, criam o clima de antagonismo que dominará o romance: de um lado, a realidade, à qual o autor concede o nome simplista de “feijão”; de outro, não propriamente o “sonho”, mas a imaturidade de Juca, sonhador, sim, e também irresponsável, perdulário, alheio a todos os elementos que compõem a vida real, de que participa como se obedecesse a mera contingência, pois não tem nenhum compromisso com as questões básicas do cotidiano: casou-se, mas a mulher é um enfeite, a maior parte das vezes um empecilho aos seus devaneios; os filhos são outros bibelôs, seu amor se resume a tratá-los como figurinhas agradáveis de se observar, mas não pessoas que necessitam de alimento, segurança, educação; os poucos alunos não lhe interessam, a não ser que manifestem pendor à escrita.

Sempre pronto a escrever poemas, o momento central do cotidiano de Campos Lara é a visita à “gameleira majestosa”. Depois de caminhar dois quilômetros, afastando-se do centro da cidadezinha em que reside, ali, sob a árvore, passa horas ouvindo a “orquestra soberba” de passarinhos, além de olhar o céu, “onde as nuvens corriam, acarneiradas, delibando a paisagem sempre nova, de colinas verdes ao longe, que a noite lentamente ensombrecia”. O narrador descreve bem essa vida de completo escapismo, interrompida pelas queixas da mulher, pelo choro dos filhos, pelas eternas dívidas.

À medida que avançamos na leitura, Maria Rosa ganha complexidade. Veja-se, por exemplo, o Capítulo 12, em que essa verdadeira heroína manifesta seu cativante realismo, próprio dos que assumem a vida de forma integral. Ao mesmo tempo, enquanto ela expõe seus preconceitos, reclamações e lembranças, o diálogo desnuda Campos Lara, infantil a ponto de obedecer às ordens mais simples da esposa.

Ao contrário do que o leitor apressado pode concluir, é Maria Rosa a personagem contagiante da história, exatamente por ser complexa, pronta a expressar seus paradoxos, dividida entre o amor pelo marido e o repúdio veemente da sua completa inabilidade para viver e da literatura, que ela considera inútil. Coube ao senso comum, entretanto, romantizar as irresponsabilidades de Campos Lara, transformando-o num herói. De fato, como afirmou Ernest Hemingway, com ironia, “o fracasso e a covardia bem disfarçados são mais humanos e mais amados”.

Orígenes Lessa sintetiza a incapacidade do protagonista para a vida, ao mostrar seu comportamento durante a primeira gravidez de Maria Rosa:

Campos Lara não sabia compreender aquele sofrimento. Fazia frases líricas sobre o drama espantoso da maternidade. Toda a sua angústia mortal só parecia sentida intelectualmente, só provocava reações literárias, não inspirava uma atitude profunda. Punha-o atormentado, sem rumo. Não sabia o que fazer. Todas as suas soluções eram ingênuas, absurdas, impraticáveis. Quisera tomar empregada — como se eles pudessem pagar! Falara em se transportarem para uma estação de águas, por causa dos rins, que não andavam bons — como se fosse possível! À primeira queixa da mulher queria chamar o médico, como se o doutor fosse de graça. Tudo no ar. Mas um chá, uma papinha, alta noite, era incapaz de fazer. Para dar uma colher de remédio, derramava meio vidro. Para fazer-lhe um escalda-pés, despejara-lhe a chaleira fervendo no joelho. Um desastre! Meu benzinho pra cá, meu amor pracolá. Mas tudo sem préstimo. E incapaz de compreender-lhe a situação, de penetrar-lhe a psicologia, de sentir a sua tragédia.

O perfeito contraponto ao infantilismo de Juca encontra-se no estudo sobre a vaidade, no Capítulo 28, que a perspicaz Maria Rosa elabora em ótimo diálogo. Seus argumentos expõem, novamente, a fragilidade do marido, escritor incapaz de conhecer a si próprio.

A glória literária acontece num futuro próximo, mas fazendo jus ao despreparo de Campos Lara para a vida: será efêmera. É o que merece o personagem cujo único ato de heroísmo restringe-se a uma rixa secundária, fruto de fofocas.

Superficialidade
Os diálogos apresentam as qualidades de Orígenes Lessa: não há redundâncias; as falas não soam como repetições da linguagem coloquial, mas têm naturalidade; as personalidades se revelam sem que o narrador precise, a cada cena, justificar os raciocínios ou os comportamentos; a tensão se instala porque as emoções transparecem na interação dos interlocutores, nos gestos, nas argumentações, nas controvérsias. Também é elogiável a escolha de narrar o núcleo da trama utilizando-se, numa longa analepse, das recordações de Maria Rosa. E merece atenção o estilo fluido, quase sempre claro, apesar de alguns chavões e trechos maçantes.

O resultado final guarda, contudo, um sabor de incompletude. O romance — na verdade, uma novela — não consegue se libertar da ligeireza que se torna evidente ao não aprofundar as questões íntimas, existenciais, do protagonista, cujos pensamentos são sempre sequestrados pela pieguice. A completa inabilidade de Juca é apresentada de forma repetitiva, insistente, ainda que por meio de situações diversas.

Muitas vezes, o esquematismo comanda a história: não convence, por exemplo, dizer que o protagonista “trabalhava sempre. Um, dois romances por ano. Palpitantes de vida. Dolorosos de vida. Cheios de um íntimo, de um suave desencanto” — frases vagas, vaporosas, que não resistem a um questionamento superficial. O próprio drama de Maria Rosa acaba por se dissolver num estranho senso de fatalidade, em completa desarmonia com suas características psicológicas:

(…) De arestas pouco a pouco adoçadas, com o correr dos anos, o rolar monótono do sofrimento, o treino diário, já mais conformada com o marido, mais capaz de compreender, de uma nova compreensão, o seu feitio pessoal e inconsertável, olhava quase com emoção aquele pobre lutador a seu modo, sofrendo com os seus personagens, sofrendo com a sua sensibilidade particularíssima. Sofrendo mesmo com as misérias e problemas do lar. A seu modo, sofrendo.

Trata-se de um resumo que não dá conta do conflito delineado — saída hábil mas precária, inconvincente.

Até mesmo o processo criativo de Campos Lara é mal apresentado: o primeiro romance, por exemplo, surge da “febre mediúnica da inspiração”. Semelhante, aliás, ao que ocorrera com Orígenes Lessa, que escreveu O feijão e o sonho em 22 dias, reconhecendo, na entrevista citada, o preço que teve de pagar pela afobação: “(…) Da primeira para a segunda edição, fiz vinte ou trinta alterações no texto. Da segunda para a terceira, cem ou duzentas. Da terceira para a quarta, duzentas ou trezentas. Da quarta para a quinta, centenas e centenas. Pequenas ou grandes, mais sérias ou menos sérias, um limpar e corrigir sem fim. Daí por diante, resolvi não ler mais. Do contrário…”.

Sem aprofundamentos, precipitando-se, no terço final, rumo ao desfecho carregado de fatalismo e melancolia pegajosa, a novela se presta à popularização, o que explica não só as sucessivas edições, mas as três versões teledramatúrgicas. Longe de ser um paradigma, O feijão e o sonho é obra menor, evidente dívida para com a linguagem publicitária.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Menotti del Picchia e Kummunká.

Orígenes Lessa
Nasceu em Lençóis Paulista (SP), em 1903 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1986. Passou a infância em São Luís do Maranhão. Ainda menino, regressou ao estado natal, vivendo em São Paulo. Fixou-se, por fim, no Rio de Janeiro. Em 1942, mudou-se para Nova York, para trabalhar no Coordinator of Inter-American Affairs, tendo sido redator na NBC em programas irradiados para o Brasil. Em 1943, volta ao Rio de Janeiro e reúne no volume Ok, América as reportagens e entrevistas escritas nos Estados Unidos. Deixou os romances Rua do Sol (1955), João Simões continua (1959), A noite sem homem (1968), Beco da fome (1972), O evangelho de Lázaro (1972), O edifício fantasma (1984) e Simão Cireneu (1986), além de coletâneas de contos e cerca de 40 obras de literatura infantojuvenil.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho