O jogo da vida e da morte

"Húmus", obra-prima do português Raul Brandão, transita entre prosa poética, ensaio e romance
Raul Brandão, autor de “Húmus’
31/03/2018

Publicado pela primeira vez em 1917, Húmus é uma das mais importantes obras da literatura portuguesa do século 20. Raul Brandão (1867-1930) criou um texto que transita entre prosa poética, ensaio e romance. Pela natureza de sua construção narrativa — fragmentação, narrador e temática — Húmus é relacionado (e comparado) ao Livro do desassossego, de Fernando Pessoa. A obra também oscila quanto à relação com determinadas estéticas literárias — pode pertecener ao simbolismo ou ao expressionismo português (pelas imagens grotescas ligadas ao emocional que se configuram ao longo da obra). Contemporâneo de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e outros importantes nomes do Modernismo Português, Raul Brandão teve uma produção interessante, e considerada sobretudo à frente do seu tempo, pela estética que desenvolveu, e que tem em Húmus significativo expoente da literatura produzida no período.

O cenário da narrativa é uma vila “deserta”, “encardida”, “com restos de muralha” e castelos e “uma praça com árvores raquíticas”. É definida como um simulacro, assim como a própria vida. Nesse espaço transitam as personagens nomeadas por Brandão com nomes excêntricos (burlescos) e que muitas vezes são alegorias de sentimentos e formas de pensar: D. Procópia, D. Restituta, D. Biblioteca, D. Leocádia, D. Desidéria, D. Inocência, D. Penarícia, D. Fúfia — velhas fedorentas de nomes inverossímeis que são apresentadas pela lente do grotesco. Elias de Melo e Melias de Melo — que têm tudo em dia e arrumado; a majestosa Teodora; a pobre Joana (personagem comovente e que personifica sobretudo, a pobreza); os ladrões e as negociações de sopa e portas a serem abertas e Gabiru, o filósofo — alter-ego e “outro ser” do narrador (anônimo), que é um “homem absurdo”. No trechos que recebem o nome de Papéis de Gabiru a morte é banida, desaparecem céu e inferno e o sonho é consagrado como ilimitado espaço da alma humana. O narrador lembra que nele mesmo, há muitas figuras, que silenciam quando uma outra fala. Esses desbobramentos acabaram por manifestarem-se ao mesmo tempo, como potência e dissonantes em relação ao mundo e à vida.

O romance se desenvolve em forma de diário, com fragmentos em que o narrador aponta acontecimentos da vila e as relações cotidianas com a morte, a vida e Deus. O conceito da morte está diretamente fixado ao próprio título da obra: húmus, matéria orgânica originada da decomposição de animais e plantas que auxilia no crescimento de novas vidas. Essa ideia de matéria da morte para a vida — mostrando que a morte e a vida se complementam — se liga à questão dos mortos, que nos rodeiam — memória e equilíbrio — para que possamos viver. Dos mortos herdamos o sonho da eternidade e a certeza de uma existência transitória. Húmus se configura como um espaço da negatividade no qual essa morte deambula entre as figuras que compõem o romance. O cotidiano acaba por ser a máscara que reveste essa camada de substância onírica, devaneio e medo em relação à morte. A vida é assimilada como uma mesa de jogo, sobre a qual nos debruçamos para poder sobreviver ao fim (inevitável), à maldade, à solidão e à violência. Não existe um motivo ou intriga na obra, mas um impulso que desencadeia movimentos e possibilidades de diálogos em que a mundividência e a metafísica proposta por Raul Brandão nos ficam evidentes.

Semelhança com Pessoa
A morte, segundo o narrador, regula a vida, “exerce uma influência oculta em todas as nossas ações”. Vivemos para morrer, e nesse espaço de tempo estamos submetidos à ideia de Deus — conceito que em Raul Brandão se assemelha muito ao de Fernando Pessoa em o Livro do desassossego: “Existam deuses ou não, deles somos servos”. A concepção da figura divina em Húmus parte justamente dessa proximidade e afastamento de um poder superior e arbitrário — para o qual direcionamos esforços em busca de palavras e de sentidos. Deus é um dos capítulos da obra, nas páginas do romance, o narrador questiona essa existência de palavras, força cega que nos move e tantas vezes motiva o sacríficio. Uma força “cega e estúpida” que não serve de nada, como comenta o narrador, mas que assim mesmo, nos colocamos em suas mãos.

A primavera, tempo de esperança e renovação, é uma das alegorias que constroem o quadro elaborado por Raul Brandão — ela é o mistério e a eletricidade. Na primavera conjugam-se a tristeza e o desejo de vida — “É a vila feita sonho”, em que os moradores esquecem suas abjeções, ódios, forjando mentiras pela ideia da renovação. Também a árvore é metáfora da vida, que recebe os benefícios do próprio húmus, a matéria da morte que se transforma — “Todos nós somos árvores.” — que crescem e florescem por dentro, adubadas pelo húmus elaborado pelos nossos mortos, sempre nos acompanhando. Outrossim, o céu e o inferno são lembrados como o espaço onde existem “o máximo de ilusões e a ausência de ilusões”, lugar por excelência de Deus — “espectro pior” que imobiliza os homens em esforços para serem ouvidos e compreendidos.

A obra publicada pela Carambaia em 2017, data em que se comemorou o centenário de Húmus, conta com posfácio de Leonardo Gandolfi — professor de Literatura Portuguesa na Universidade Federal de São Paulo. O texto final contribui para o leitor no processo de decifração do romance de Raul Brandão. Além do resgate de alguma fortuna crítica sobre Húmus, Gandolfi esclarece determinadas chaves de leitura, como a ideia da obra ser um “romance estático”, por ter muito do espírito da época (a Primeira Grande Guerra estendeu-se de 1914 a 1918), além de recordar a estética simbolista, o decadentismo e a crise de cultura da época de sua escrita. Lembra ainda da proximidade do texto de Raul Brandão com as Confissões de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro. E comenta que a hipertextualidade de Húmus se expande em Maria Gabriela Llansol e Herberto Helder — grandes nomes da literatura portuguesa da segunda metade do século 20. Outras características importantes de Húmus são lembradas por Gandolfi: a questão da linguagem, através das anáforas, repetições de termos usados ora em frases afirmativas, ora em frases interrogativas; construções que se complementam por oposição e sempre a reiteração de frases e palavras que condicionam cada ideia enunciada pelo narrador.

Húmus foi editado três vezes: a primeira em 1917, depois as outras duas edições de 1921 e 1926 sofreram profundas modificações de Raul Brandão. É, portanto, um livro que pode ser entendido, para além do que já foi dito sobre os elementos que o constituem: a morte e as metamorfoses que sofremos ao longo da vida por causa da ideia da finitude, evitada no sonho e lembrada pela durabilidade da matéria. “Todos nós pelo pensamento somos capazes de hecatombes.” — basta que nos acendam o pavio da vontade e do entendimento.

Húmus
Raul Brandão
Carambaia
312 págs.
Raul Brandão
Nasceu em Foz do Douro, Porto, em 1867, e faleceu em Lisboa, 1930. Foi militar, exerceu o jornalismo e a escrita ficcional. Tornou-se conhecido pelo tratamento dado à linguagem e o radicalismo crítico. Sua obra é influenciada pelo Simbolismo e o Decadentismo, estéticas finisseculares e que determinam singulares aspectos em seus textos. Pertenceu ao grupo dos Nefelibatas e da Geração 90 do século 19. Entre suas obras estão: A farsa (1903), Os pobres (1906), Húmus (1917) e Os pescadores (1923).
Gabriela Silva

Graduada em Letras, licenciatura plena em língua portuguesa, literaturas de língua portuguesa e Especialista em “Leitura: Teoria e Prática” pela Fapa; Especialista em Literatura Brasileira e Mestre em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Doutora em Teoria da Literatura.

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