A sobriedade da embriaguez

Em "Manual da faxineira", de Lucia Berlin, o cômico e o horror convivem numa fusão, por vezes, desconcertante
Lucia Berlin, autora de “Manual da faxineira”
31/03/2018

“Não me importo de contar coisas horríveis para as pessoas, desde que consiga torná-las engraçadas”, diz a narradora do conto Silêncio, da coletânea Manual da faxineira. A concisão, a brutalidade e a transformação realizada pela narrativa nessa frase apontam um caminho para entrar na prosa da norte-americana Lucia Berlin. Concisão porque é precisa, mesmo que não caiba em qualquer restrição própria da objetividade. Brutalidade porque já coloca de antemão o horrível da vida e quase uma naturalidade em tratar dele. Transformação porque há algo como uma operação. Berlin passa pela desilusão, mas seus contos não tomam o rumo da melancolia. Um tipo de alegria paira, a possibilidade de ver algo mesmo na mais ingrata das situações. Como grande contadora de histórias que é, sempre há algo além do horror, sempre há alguma cor a ser vista.

Manual da faxineira reúne 43 contos, e neles é possível notar a reincidência de alguns temas — os cenários, a difícil relação com a mãe, a maternidade, o desafio de sustentar quatro filhos por conta própria, o alcoolismo, principalmente o alcoolismo — e também a prevalência de um ritmo tão dinâmico quanto violento. A organização dos contos, embora não cronológica, apresenta uma sútil evolução e delineia um enlaçamento.

O ponto de partida é Lavanderia Angel’s, conto sobre duas lavanderias e encontros distintos — o primeiro com uma velha que solicita à narradora a constatação de sua presença semanal no recinto, caso o encontro às quintas-feiras não aconteça, significa que a senhora morreu e a narradora deve buscar seu corpo. No segundo encontro, com um índio alcoólatra, é ela quem é notada, são os olhos do índio que procuram, pelo reflexo de um espelho, as mãos da narradora. No conto que fecha a coletânea, Voltando para casa, a narradora pensa em diversos “e se” e na solidão que se encontra no final da vida. De início, ela conta a solidão alheia, nas páginas finais, é a solidão dela que está em questão.

Manuais, destinatários e cadernos
A narração em primeira pessoa prevalece nos contos de Manual da faxineira. E diante dessa prevalência, vale traçar alguns comentários sobre os recursos que tornam mais complexa essa escolha de perspectiva. Para começar, no conto que dá título à coletânea, é uma narradora em primeira pessoa quem fala, mas, como o próprio título sinaliza, o formato em manual tem efeitos. Há quase que um roteiro geográfico, os endereços dos empregadores iniciam alguns dos parágrafos, e a narradora se coloca em meio ao deslocamento decorrente da função de faxineira diarista. A ideia de manual é subvertida com o humor que é próprio da escritora, as instruções da profissão seguem rumos pouco convencionais e dizem sobre a capacidade de observar além do banal e de diagnosticar as relações do trabalho doméstico.

(Faxineira: Mostre a eles que você faz um serviço completo. No primeiro dia, ponha todos os móveis de volta no lugar errado… dez a vinte centímetros mais para um lado, ou virados em outra direção. Quando tirar o pó, inverta a posição dos gatos siameses. Ponha a cremeira à esquerda do açucareiro. Troque as escovas de dentes de lugar).

Os parênteses são breves adendos, conselhos para as companheiras de profissão. É outro aspecto notável de alguns dos contos de Berlin, por vezes o ritmo narrativo é levemente alterado por algum tipo de endereçamento, como nesse trecho em que se dirige às faxineiras. Em Pantéon de Dolores, a narradora começa contando sobre a ofrenda, tradição mexicana que consiste em uma reunião dos traços deixados por um morto. Em seguida, a narradora conta que está no México, com a irmã, doente e à beira da morte, e juntas fazem a ofrenda desta que está prestes a partir. Até que o ritmo do conto é quebrado pelo endereçamento à mãe:

Mamãe, você não estava na ofrenda. Não deixamos você de fora de propósito. Na verdade, temos dito coisas afetuosas a seu respeito nos últimos meses. Durante anos, sempre que nos encontrávamos, Sally e eu, nos queixámos obsessivamente de como você era maluca e cruel. Mas nos últimos meses… (…) Lembramos de suas piadas e do seu jeito de olhar, aquele olhar que nunca deixava escapar nada. Você nos deu isso. Essa capacidade de olhar.

O endereçamento é traçado também pelo recurso epistolar, em Querida Conchi, no qual a narradora escreve para uma amiga distante sem nunca receber resposta. Outra maneira de jogar com as possibilidades narrativas está presente em Caderno de notas do setor de emergência, 1977. Neste, o tom é mesmo o de um esboço de anotações sobre a experiência como enfermeira de uma emergência. A sensibilidade desta que anota cria um contraste com a frieza de um ambiente onde impera a racionalidade da ciência. E, como em Manual da faxineira, há uma atenção ímpar ao que é supostamente protocolar da profissão.

Enquanto os membros da equipe pensam em termos de códigos bons ou ruins — com que grau de eficiência cada um fez o que tinha que fazer, se o paciente reagiu ou não —, eu penso em termos de mortes boas ou ruins.

No meio do deserto, a lua
O que é particularmente singular e belo nos contos de Berlin é a lua no meio do deserto, em termos metafóricos, embora em Desgarrados apareça literalmente. Este conto é ambientado em uma espécie de colônia para dependentes químicos e alcoólatras. Um projeto piloto de reabilitação, ironicamente chamado de “La vida”, no meio do deserto, isolado, onde os internos, após receberem as doses matinais de metadona, realizam trabalhos compulsórios. O cenário é hostil, árido em todos os sentidos, os companheiros de reclusão da narradora são figuras tristes, desgarradas, como indica o título. E mesmo assim, em meio a tudo que há de inóspito, há a lua, e a capacidade da narradora de ver uma brecha na rudeza ao redor.

Mas aí, às vezes, só por um segundo, é como se você recebesse uma graça, a crença de que aquilo importa muito.

Outro trecho potente nesse sentido está em Mordidas de tigre. Quando uma jovem de dezenove anos, com um filho de um ano, grávida do segundo e abandonada pelo marido, se vê em uma clínica clandestina de aborto, rodeada por mulheres constrangidas e amedrontadas. Ela então percebe que não quer realizar o aborto, que por mais ingratas que as perspectivas sejam, ela, o filho e o bebê por vir podem ser uma família. Não é algum otimismo pueril, é o horror transformado, é a beleza possível da vida, que não exclui o trágico, se trata mais de uma tomada de posição subjetiva perante o adverso, a tristeza, a solidão.

Tomada de posição que também está presente na composição das frases curtas e pungentes de Berlin. Traço bastante marcante é a comparação, que faz coexistir o cômico e o horroroso, fusão que por vezes é desconcertante. A menina, que arranca um por um os dentes do avô bêbado, diz: “o som era como o de raízes de árvores sendo arrancadas do solo congelado no inverno”, a jovem que assiste o médico introduzir o mecanismo para realizar abortos descreve o procedimento: “empurrando lentamente o tubo lá para dentro, como quem recheia um peru” ou a idosa que observa um funcionário que mede o banheiro para trocar o ladrilho: “Aquela sua catinga era como uma madeleine para mim, trazendo de volta vovô e Tio John, para começar”. Comparar a madeleine de Proust com o odor de um homem velho e gordo demais para realizar o serviço pelo qual ela o contratou, e o poder desse cheiro de levar a narradora de volta à infância. É esse o tipo de transformação que está em questão na escrita de Berlin.

Em Ponto de vista, a narradora propõe imaginar o conto Angústia, de Tchekhov, contado em primeira pessoa. Ela supõe um leitor constrangido, desconfortável e até enfadado com a história do cocheiro. Em seguida, essa narradora fala do seu esforço em criar uma personagem que seja tão verossímil ao ponto de o leitor não ter como não se compadecer com ela. Não deixa de ser provocativo. O constrangimento potencial que as personagens de Berlin provocam vai mais na direção de uma humanidade completamente despudorada, como a de uma mãe que conta calmamente sobre como se embriaga após colocar os quatro filhos na cama. Longe de qualquer enfadamento, a narração em primeira pessoa também não passa por verossimilhança. Apesar das possíveis aproximações dos eventos dos contos com acontecimentos da vida da escritora, a narrativa parece ser mais um destino para a dor do que uma representação dela. O esforço e a coragem necessários para falar do que há de irremediável, sem que isso se torne uma sucessão de perdas. A alegria no meio do horror. Como o cocheiro de Tchekhov que, na ausência de um ouvinte, destina a angústia a sua égua, Berlin tem a escrita.

Manual da faxineira
Lucia Berlin
Trad.: Sonia Moreira
Companhia das Letras
532 págs.
Lucia Berlin
Nasceu no Alasca, em 1936, e morreu em Los Angeles, em 2004. Filha de um engenheiro do ramo da mineração, morou, ao longo da infância, em cidades mineradoras dos estados de Idaho, Montana e Washington, e em Santiago, no Chile. Também passou parte dos primeiros anos de vida em El Passo, cidade fronteiriça no Texas. Casou-se e divorciou-se três vezes. Trabalhou como faxineira, enfermeira, secretária e professora de escola secundária para sustentar os quatro filhos. Lutou por boa parte da vida contra o alcoolismo. Nos anos 90, passou a lecionar na Universidade do Colorado como escritora visitante. Publicou setenta e seis contos em vida, os primeiros no periódico The Noble Savage, de Saul Bellow.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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