O veneno da beleza

É bom lembrar que toda beleza, mesmo a mais sedutora, esconde a ponta de um veneno
28/02/2018

Chegamos ao mês do carnaval, o mês das fantasias, dos disfarces e das máscaras, todos alimentados pelo desejo irrefreável da beleza e da perfeição. Também da alegria se pede o máximo: que seja intensa, que não tenha limites, e nunca se esgote. O carnaval é, de fato, uma bela festa, que nos ensina a viver intensamente. Que celebra a vida e, portanto, enfrenta a morte. E que se opõe, ainda que magicamente, aos dias tristes, de fanatismos e dogmas, de intolerância e ódio, cada vez mais ferozes, que vivemos hoje no Brasil.

É bom lembrar que toda beleza, mesmo a mais sedutora, esconde a ponta de um veneno. Não me refiro, é claro, ao pecado, ou à decadência, ou mesmo ao imoral — essas noções que assombram as noites dos fundamentalistas. Penso em uma malignidade muito mais sutil, e mais verdadeira: penso na perversidade que se esconde mesmo sob as mais belas máscaras. Na força incontrolável dos opostos. Ideias que me vêm enquanto folheio A arte do retrato, de Norbert Schneider, que leio na edição alemã da Taschen.

A perfeição é, antes de tudo, perversa: ela desautoriza, humilha e aniquila a tudo e a todos que não se encaixam em seus dogmas. É traiçoeira: divide o mundo entre os puros (os “perfeitos”) e todos os demais, que provavelmente, mesmo que não saibam disso, afundam na lama. O livro de Schneider — repleto de reproduções magníficas de grandes telas da arte europeia da Renascença — me ajuda a entender os tênues limites entre beleza e maldade. É bom lembrar que, quando alguém visita o Museu do Louvre, ou a Galeria Uffizi, não se depara apenas com o belo, mas — se consegue sustentar o olhar, se consegue realmente ver — também com o horror.

Não falo só de telas em que beleza e feiúra se encontram de modo escandaloso — como a célebre A rainha de Tunis, do pintor flamengo Quentin Massys, fundador da Escola de Antuérpia. Nem o solene chapéu, nem um broche que o coroa, conseguem disfarçar ou esconder as deformações e imperfeições que se alastram pelo rosto da soberana. A intenção de Massys parece ter sido essa mesma: contrapor, escandalosamente, os opostos.

Penso mais em uma tela como o retrato de Giovanni Arnolfini, que o flamengo Jan van Eyck pintou no século 15. Dissimulado, embora solene e cheio de si, Arnolfini não olha para frente, olha para o lado. Traz nos lábios um sorriso que pode ser de alegria, mas também de deboche. Na mão direita, carrega, dobrado, o que parece ser um documento, sem que se possa perceber de que se trata. Pode ser uma carta de amor, pode ser uma condenação à morte. Mais que a perfeição, destaca-se na tela a dissimulação, que é muito discreta, é elegante, e facilmente engana os espectadores apressados.

A dor também se infiltra na beleza, como um veneno que se inoculasse em um corpo sadio. É o que se mostra no célebre retrato do jovem Ranuccio Farnese, pintado por Ticiano. Vestido como um cavaleiro de Malta, com a notável gola rendada que protege seu rosto, o rapaz parece, a princípio, sereno e, talvez até, cheio de si. Contudo, se nos fixamos com mais atenção em seu olhar, e ainda no modo discreto, mas intenso com que provavelmente trinca os dentes, percebemos uma tensão que escorre da máscara irretocável, uma força negativa que não só esconde, mas representa uma extrema dor. As orelhas, em abano, parecem fugir daquela falsa placidez. O queixo, pontudo, talvez engula a seco alguma má notícia. Nesses detalhes, a perfeição desmonta, revelando-se mais uma aflição.

Uma tela em que a beleza aparece infiltrada, de forma bem mais escandalosa, pelo sofrimento é o Autorretrato que Rembrandt pintou em 1629, guardado hoje na Pinacoteca de Berlim. Um retrato menos conhecido (mais repulsivo, talvez) que o célebre Autorretrato que pintaria um ano depois, e que está hoje no Rijksmuseum, de Amsterdã. Na tela que me interessa aqui, a possível beleza do jovem pintor (que é solene e solar no outro retrato) surge borrada por uma sombra, que começa nos cabelos desgovernados, se derrama sobre os olhos saltados e chega à boca, que parece apenas balbuciar alguma coisa — talvez um pedido de socorro. Aqui, nessa tela, a beleza explode, deixando sair de dentro de si o desespero. Os dois quadros se fundem, de certa maneira, em um terceiro Autorretrato, o mais famoso de todos, de 1659, hoje na National Gallery, de Washington. Nele, a pose solene e confiante, do grande artista maduro não esconde certa angústia, que começa nos olhos levemente crispados, se estende pela roupa negra que se dissolve no ambiente negro também, e que ressurge, trêmula, nas mãos cruzadas, que mal podemos ver.

Nem mesmo a determinação de conter a beleza em si mesma, de aferrar-se a ela, nem mesmo as exigências do amor, conseguem disfarçar o mal-estar que aparece, por exemplo, no retrato que o igualmente célebre Rubens pintou, em 1622, de sua primeira mulher, Isabela. É um retrato suntuoso; Isabela, olhando fixamente para frente, parece se orgulhar de sua própria luz; mas em seu sorriso trincado, embora belo, pingam gotas de desilusão (ou será desprezo?); e seus olhos, talvez vivos demais, mal conseguem dissimular o espanto. Isabela Brant deve ter se orgulhado do retrato assinado pelo marido; a vaidade, na maior parte das vezes, age como um véu que encobre o que menos desejamos ver.

Sentimento parecido extravasado pelo jovem rapaz, que Sandro Botticelli pintou em 1480. O queixo erguido exibe confiança e firmeza; a roupa discreta, mas solene, comprova, talvez, que nele a beleza é algo natural; ainda assim, as sobrancelhas, excessivamente esticadas, e mesmo os olhos, talvez um pouco luminosos demais (seriam lágrimas retidas?), atestam um sentimento contido que se aproxima da desconfiança e pode também exibir o medo.

Inevitável concluir pensando na Mona Lisa, que Leonardo Da Vinci pintou em 1503. Muito se fala de seu sorriso, quase sempre definido como enigmático — isto é, portador de um mistério, ou de um segredo indecifráveis. Mas seus olhos, espremidos sob a testa larga, exibem, de modo talvez ainda mais escandaloso, uma hesitação, uma dúvida que parece incontornável. Da face famosa se reflete um sentimento ruim, que não sabemos qual possa ser. A beleza e a perfeição estão sempre a esconder o inominável.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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