Casa e caramelo

Os textos de Samanta Schweblin e Andrea Jeftanovic voltaram a me despertar para a narrativa breve
Ilustração: Igor Oliver
28/02/2018

Duas autoras hispanofalantes que recentemente li — por indicação da amiga Inês Cardoso — voltaram a me despertar para a narrativa breve. Samanta Schweblin, argentina, e Andrea Jeftanovic, chilena, alcançam o melhor do manejo contístico. Da primeira, Siete casas vacías (2015) é um volume perturbador, unificado em suas histórias pelo tema da vergonha causada pela família. Comportamentos insanos ou hábitos inexplicáveis levam a intervenções da polícia ou à chegada de ambulâncias, como uma tentativa de restabelecer a ordem — e quase sempre é uma personagem secundária quem narra: aquela que sofre as consequências dos protagonistas problemáticos.

Há também situações que envolvem vizinhos, na similar condição de um universo íntimo e inquietante em que algo sai do normal. A perda da memória, a demência, a dor — tudo leva à ideia de que, ao contrário do que pretendia Sartre, o inferno não são os outros; o inferno somos nós mesmos, em conflito permanente. Atos desvairados, cometidos por figuras avulsas pela cidade: os contos de Schweblin tratam de solidão e do enigma das personalidades. Comparada a Andrea Jeftanovic, notamos que de fato ela é mais veloz, mais econômica (e talvez mais profunda, por “deixar o entendimento para o leitor”, conforme ressalta numa entrevista disponível na internet).

Os textos de Jeftanovic podem, em compensação, atingir um maior grau poético, mas nem por isso chegam todos a ser convincentes. O tema de familiares complicados, envolvidos em jogos de perversão, igualmente cruza o seu No aceptes caramelos de extraños (2011) — e assim encontramos casais que, juntos há 30 anos, precisam fingir que são estranhos para que o desejo físico lhes ressurja… porque o muito conhecido aborrece, repugna — mas o mistério em geral inspira respeito. Há um erotismo de gestos elásticos e complexos, envolvendo vizinhos com seus segredos sexuais, sua cumplicidade incomunicável.

Se Schweblin é uma autora visual (por herança de sua formação em cinema), Jeftanovic é uma escritora de texturas. Ela claramente não se inibe diante de associações plásticas. Cria efeitos sinestésicos, arrisca elos que — mesmo quando escorregam num certo exagero expressionista — são admiráveis pela ousadia. O conto que dá título ao volume, por exemplo, trata do desaparecimento de uma garota de onze anos, com o consequente desmembramento da cidade criado pelas buscas da mãe. Num belo trecho à página 111, conferimos:

Salir andando, por inseguridad y por vacío de la voluntad, como si la caminata fuera la ultima experiencia que puedo ofrendar al paisaje de ruinas por donde te mueves, sin fuerzas para montar mi ventana fuera del anonimato.

Os caramelos são a rota da fuga, do desabrigo — são as pistas que repercutem, confusas, dessa memória mítica de Grimm: migalhas de pão sumidas, no caminho que leva à casa da Bruxa. Mas o local da maldade pode ser bem ali, junto aos próprios parentes. Um dos melhores textos do livro é Árvore genealógica, que trata da sedução do pai pela própria filha. Censurado em antologias da Alemanha e dos EUA, onde se considerou que fazia a “apologia da pedofilia” e do incesto, penso se no Brasil de hoje esse conto também não seria motivo para levantar escândalos… A arte, enquanto espaço para a liberdade e a experimentação moral, conforme Jeftanovic, vem sendo cada vez mais vigiada por aqui.

Mas, pelo gosto dos censores, dos fiscais de “situações anormais”, os contos de Schweblin também deveriam ser varridos. Cenas vexatórias ou desagradáveis devem ser escondidas sob a pátina de bons modos, boas intenções? O conto Mis padres y mis hijos questiona exatamente tais fronteiras. Quando um casal de idosos, por um ato de demência (ou não) começa a se divertir num estado naturista e arrasta para essa celebração os dois netos pequenos, a polícia — junto com os adultos “responsáveis” — é incapaz de ver uma ingenuidade nesses gestos. O final do texto traz um riso implícito (que talvez ainda seja a melhor arma contra as exigências sociais):

En ese momento me vuelvo hacia la casa. Los veo, ahí están los cuatro: a espaldas de Charly, más allá del jardín delatero, mis padres y mis hijos, desnudos y empapados detrás del ventanal del living. Mi madre restriega sus tetas contra el vidrio y Lina la imita mirándola con fascinación. Gritan de alegría, pero no se los escucha. Simón las imita a ambas con los cachetes del culo. Alguien me arranca la malla de la mano y escucho a Marga putear al policía. El radio hace ruído. Gritan a la central dos veces las palavras “adultos y menores”, una vez “secuestro”, tres veces “desnudos”, mientras mi exmujer golpea con los puños el asiento trasero del conductor. Así que me digo a mí mismo “no abras la boca”, “no digas ni um”, porque veo a mi padre mirar hacia acá: su torso viejo y dorado por el sol, su sexo flojo entre las piernas. Sonríe triunfal y parece reconocerme. Abraza a mi madre y a mis hijos, despacio, calidamente, sin despregar a nadie del vidrio.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho