Uma dor familiar

"Pretérito imperfeito", de B. Kucinski, apresenta o drama da relação de um pai com o filho dependente químico
B. Kucinski, autor de “Pretérito imperfeito”
25/02/2018

É impossível se desfazer de um filho. Paternidade e maternidade nos colocam em uma ligação eterna. A profundidade do vínculo é justamente um tempero para as emoções que envolvem essa relação. O narrador de Pretérito imperfeito, de Bernardo Kucinski, parece se inquietar com isso: ele está exausto pelas decepções que viveu, e ao mesmo tempo não consegue deixar de se importar com o filho, que é dependente químico. Em uma carta, o protagonista relata os problemas que enfrentou e tenta encerrar a responsabilidade paterna. Ele se refere à carta como sua “alforria”, mas é uma tentativa falha de não se preocupar mais com esse filho, não estar mais ligado a ele. A situação é mais complexa.

Pretérito imperfeito é a história de um pai que luta pela recuperação do filho usuário de drogas e os percalços desse jovem, desde a infância até a idade adulta. As primeiras crises do pai vêm da espera pelo menino que fica na rua até tarde da noite. Sair em busca dele, e descobrir que não está nada bem, são agravantes da situação. Ao longo do enredo, esses “sumiços” ficam cada vez mais frequentes e dramáticos. Em meio à sequência de problemas, o pai mergulha na própria memória em busca de explicações.

Ele conta que o menino é adotado, pois o casal não podia ter filhos. Isso nunca pareceu ser motivo de grandes debates na família, mas em certo ponto ele se questiona se talvez a falta de diálogo sobre as origens da criança impulsionou essa instabilidade comportamental. Além disso, o menino é negro e o pai relata situações tensas de discriminação ao longo da sua juventude.

Pretérito imperfeito é um romance sobre família, e que traz à luz uma abordagem do amor paterno como uma “construção”, algo que não parece instantâneo. Um afeto incondicional, mas cheio de sutilezas, dúvidas, desespero. Percebe-se que o pai às vezes tem pouco jeito para lidar com algumas sutilezas definitivas no comportamento do jovem. A mãe também está na trama, mas aparece raras vezes. As poucas menções a ela na história nos fazem visualizar um personagem com mais habilidade de ver esse drama “de fora”, de maneira analítica.

A angústia familiar é que a vigilância sobre o filho parece nunca ter fim; uma consequência da dependência química. Mesmo com a aparente recuperação, os pais ainda precisam de um tempo para voltar a confiar nele. Basta que ele não esteja em casa no horário combinado, e mil pensamentos sobre o que pode estar acontecendo atormentam o casal. Eles chegam a enviar o filho para Israel — a família é judia e conhece uma boa clínica de recuperação no país — na expectativa de que a mudança de rotina e de ambiente colabore na criação de uma nova perspectiva na vida do rapaz.

A maneira como o jovem aparece na obra é mais sutil, porém intensa. Sua voz surge em um interrogatório, por exemplo, quando ele é acusado de agressão pela companheira, já numa etapa avançada do vício. Mas o fato de aparecer dessa forma não exclui o forte traço do personagem. Ainda assim, o autor constrói muito bem uma teia de descrições que nos possibilita enxergar sua personalidade.

Dependência química
Em busca de explicações e cura para o problema, o narrador recorre a leituras, à própria memória do seu desempenho como responsável pelo jovem, e a profissionais especialistas no assunto. E o livro é cuidadoso nas referências a esse tema, abordando-o de maneira reflexiva, tentando cercar alguns motivos que levam alguém a buscar refúgio nas drogas. O pai se refere várias vezes à dependência como “paraíso artificial”, talvez tentando compreender o vício; mas todo o esforço não o poupou de situações de extremo drama.

Entrei no escritório e dei com ele fumando por um buraquinho numa lata de cerveja amassada e vendo mulher pelada no computador. Chapado total.

Nesse aspecto, um dos trechos mais interessantes é quando a obra traz uma espécie de entrevista com um profissional da saúde. O argumento central apresentado é de que a dependência química precisa ser tratada como doença, não simplesmente como desvio moral. Que pode ter várias causas e que se assemelha a outros tipos de vícios mais socialmente aceitos, por assim dizer, mas é muito mais condenada.

O narrador quer nos mostrar que inclusive as políticas públicas para dependentes químicos não funcionam no país, e acabam atuando como controle social. É um problema, portanto, maior do que um pai poderia imaginar, e maior do que conseguiria lidar sozinho. A noção da sua própria impotência e a complexidade da questão ajudam a compor esse drama familiar.

Os especialistas que aparecem na obra têm um papel importante ali, e um deles faz um dos comentários mais marcantes do livro. Ele associa a dependência química — e não só ela, como outros meios de refúgio que utilizamos por uma série de razões — a um desamparo inerente às pessoas.

Nenhuma espécie nasce tão desamparada quanto a espécie humana, o bebê nasce absolutamente impotente: deixado só, morre em poucas horas ou dias. Esse desemparo ao nascer jamais nos deixa, vira medo de um novo desamparo.

Um hábito comum entre os adultos é contar vantagens dos filhos para os amigos: as conquistas que tiveram, as habilidades que desenvolveram antes de outras crianças da mesma idade. Esse costume aparece na trama como uma confissão, em que o pai questiona: como se faz isso quando o filho sai totalmente do caminho imaginado pelos pais? Quando está numa crise profunda, sem vantagens que possam ser amplamente divulgadas entre os amigos? Mas o personagem descobre que, no fundo, até mesmo os pais dos filhos “exemplares” têm grandes conflitos emocionais e comportamentais a esconder. 

Realidade e ficção
Kucinski também é autor de K: Relato de uma busca, publicado pela primeira vez em 2011 e finalista de prêmios literários. Leitura fundamental para quem quer experimentar boa literatura e conferir uma abordagem rica da História do Brasil. No livro, um pai procura pela filha, militante desaparecida no período da ditadura militar.

Em comum, K: Relato de uma busca e Pretérito imperfeito têm inspiração em situações reais da vida de Kucinski. Ana Kucinski, irmã do escritor, foi sequestrada de morta em 1974. As circunstâncias ainda hoje não estão plenamente esclarecidas. Quanto ao livro mais recente, o autor já revelou em entrevista que parte dos episódios realmente aconteceu. Além disso, está o fato de as duas obras se referirem aos problemas familiares pela perspectiva da paternidade, e em que a relação está longe de ser perfeita.

Kucinski vem de uma longa trajetória como jornalista e militante. A ficção surgiu em seu caminho há aproximadamente dez anos, quando passou a assinar como B. Kucinski e apresentar assuntos valiosos para ele sob a forma literária. Não se pode negar, no entanto, o extremo valor de suas histórias para além dos fatores históricos. O estilo seco para tratar de assuntos muito pesados e a costura sagaz da narrativa valem a leitura por si só. Com essas duas qualidades do autor trabalhando juntas, o resultado é implacável.

Pretérito imperfeito
B. Kucinski
Companhia das Letras
150 págs.
B. Kucinski
É jornalista, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), e foi assessor da presidência da República entre 2003 e 2005. Já publicou livros sobre economia, política e jornalismo. Aos 74 anos, lançou K: Relato de uma busca, sua estreia na ficção e que o garantiu na lista de finalistas de diversos prêmios literários. Também é autor de livros como Os visitantes e Você vai voltar pra mim.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho