Conversa consigo mesma

Entrevista com a argentina Mariana Enriquez, cujas narrativas exigem lidar com a escuridão
Mariana Enriquez, autora de “As coisas que perdemos no fogo”
27/01/2018

Mariana Enriquez mora em Buenos Aires, onde o sobrenatural existe com uma medida de cinismo que não se vê ao norte do país, na fronteira entre a Argentina, o Paraguai e o Brasil. Neste ponto de convergência cultural e proximidade dos trópicos, sob calor sufocante e nuvens de insetos, circulam os personagens de uma Teia de aranha — conto publicado pela New Yorker e cujo final provoca a gravitação do leitor ad eternum. Para Enriquez, na América Latina encontra-se a grande aventura e o espaço de mudança radical. Considerando lugares como protagonistas atuantes, a autora expõe pela escrita as vísceras da violência e as fendas dos abismos a engolirem desaparecidos e marginalizados, em sua maioria jovens. Neste sentido, marcas indeléveis de crueldade institucionalizada e injustiça social funcionam como sombra maior. Percorrer as narrativas de Enriquez exige lidar com a escuridão e as relações espirituais na arquitetura da alma que pode estar contida em uma casa e não tão somente no corpo.

As coisas que perdemos no fogo, uma seleção de contos góticos e macabros, acaba de ser lançado no Brasil [leia resenha na página 8]. Entretanto, foi em 1995 que Mariana Enriquez, recém-saída da adolescência, editou o seu primeiro livro: Bajar es lo peor, uma história gay com drogas, romance, wanderlust e alucinações e que a atirou na inesperada ciranda da fama. Naquela época, no período da paridade do peso com o dólar e encurralamento da classe média, Enriquez frequentava entrevistas e programas de auditório como a “autora mais jovem” da Argentina. Bajar es lo peor havia sido datilografado por ela em noites regadas a vinho e fumando cigarros de maconha. Havendo experimentado este súbito sucesso, pelo qual caminhava com botas militares, saias de imitação de couro e camisetas estampadas de AC/DC, Enriquez voltou a publicar novo livro uma década mais tarde quando então se assumia como escritora.

Conta a autora que lê histórias de terror desde pequena e que esta linha de criação lhe permite tratar de assuntos sérios enquanto oferece ao leitor uma espécie de entretenimento mais popular, sem que isso deprecie o trabalho de cunho literário. Segundo Enriquez, o medo provoca sensações físicas nos leitores. Ela o utiliza como a tinta escorre da pena, de forma absolutamente destemida.

Mariana Enriquez é jornalista, romancista e contista. Formada pela Universidad Nacional de La Plata, escreve também para diversos jornais e revistas. Em conversa com o Rascunho, defendeu o fortalecimento de um intercâmbio literário entre Brasil e Argentina.

• As coisas que perdemos no fogo, assim como Los peligros de fumar en la cama (ainda sem tradução para o português), é protagonizado por jovens mulheres em situações marginais. Será que através da escrita e da leitura sucede-se uma transgressão temporal, perpetuando a juventude tanto da autora quanto a de seus leitores?
Não foi esta a minha intenção. Escrevi os contos de ambos os livros em um longo período de tempo e, com alguma surpresa, reparei que as narradoras eram sempre mulheres. Os meus dois primeiros romances são protagonizados por homens. Algo mudou: eu enfrentava certa dificuldade em encontrar vozes femininas, passei a tentar encontrá-las nos contos porque em um texto breve estas vozes seriam mais fáceis de dominar e então, quase como resposta a um problema técnico, começaram a surgir estas narradoras, estas mulheres. Penso pouco nos leitores quando escrevo: a escrita é uma conversa comigo mesma. O tema das mulheres e das vozes femininas estava no ar, é um tema contemporâneo de discussão pública e aderiu aos temas dos meus contos. Contudo, sobre o tema da juventude das mulheres simplesmente não havia considerado. Gosto de escrever sobre adolescentes: acredito que há um certo poder nessa idade e nas mulheres nessa idade, tão audaciosas e vulneráveis ao mesmo tempo. Gosto delas como personagens: não as vejo como continuações de mim. Em geral, sinto-me bem longe dos meus personagens.

• Do que se alimentaria a marginalidade? Teria sido esta a fonte que a inspirou a escrever La hermana menor sobre a majestosa escritora Silvina Ocampo, a menina “terrível”?
A marginalidade sempre é mais interessante que o centro. As mulheres escritoras têm sido, de algum modo, sempre marginais. Seguem existindo prêmios para mulheres, mesas de literatura feminina, ensaios sobre o que seria isso de ser uma escrita para mulheres! E não se trata de estimulá-las ou apoiá-las, creio que se faz isso para se continuar insistindo na marginalização da escrita por mulheres e relegá-las a uma espécie de gueto. Gosto muito da escritora Silvina Ocampo e escrevi o livro sobre ela a pedido da editora, Leila Guerriero, que considerou a proposta ideal para mim. Ela sabia que eu me interessava pela Silvina, que conseguiu uma situação especial: a liberdade de estar sob a sombra do seu marido (Bioy Casares), de Borges e da sua irmã Victoria Ocampo. Na sua excentricidade e posição privilegiada logrou em uma narrativa quase secreta, pouco lida na sua época, e absolutamente original e louca, com toda a liberdade por não ser ela o centro das atenções. Acredito que, se existe alguma marginalidade na escrita, deve ser aproveitada para que se escreva exatamente como se quer, sem condições além das próprias limitações pessoais ou individuais.

• Assim que li O menino sujo, conto de As coisas que perdemos no fogo, relacionei-o imediatamente ao conto Conservas, da também argentina Samanta Schweblin. Em ambas as narrativas, desponta a questão do laço maternal entre a protagonista e a criança. Seria este um conflito que se aflora nos tempos atuais em que a identidade da mulher se aproxima e se afasta da maternidade?
Não tenho filhos e a questão da maternidade tampouco me interessa do ponto de vista pessoal. Não é uma questão que se coloca como problema ou um tema pendente, jamais quis ser mãe. Entretanto, isso é diferente para as minhas personagens. Em As coisas que perdemos no fogo, poucas mulheres são mães. Algumas porque são adolescentes, outras porque não gosto de definir a identidade de uma mulher pela sua capacidade de parir. Quis explorar aspectos adicionais do feminino, desligados da maternidade e da relação filial, ou então colocar a maternidade sob conflito, por isso aparecem estes laços maternais de estranhamento ou cravados pela irresponsabilidade como no conto O menino sujo.

• Tecendo mais um paralelo, as casas aparentam exercer um papel fundamental nos seus textos, assim como no livro Sete casas vazias, de Schweblin. Por que escrever sobre a “casa”, quase como se ela transcendesse no papel de personagem?
Nos meus contos, as casas são personagens, os bairros e, inclusive, as regiões. Acredito no espírito dos lugares, no genius loci: um lugar, na minha opinião, repete a sua história, contamina o que o toca e o que o rodeia. As casas, nos meus relatos, não são refúgios. São vulneráveis. São, inclusive, passageiras. São lugares de instabilidade, não de sossego. A casa tem a sua vida própria e, em vários casos, é hostil com seus habitantes.

• Hitchcock dizia que alguns filmes são “fatias da vida” mas que os dele eram “pedaços de bolo”. Os contos assumem formas? O que você quis dizer em uma entrevista quando mencionou “contos anfíbios”?
Com o termo “contos anfíbios” quero dizer que, na minha opinião, não estão ligados a nenhum gênero em particular. Há elementos de policial, por exemplo em O menino sujo ou em Sob a água negra. Outros têm elementos de horror, como em O quintal do vizinho. Há elementos de crônica em As coisas que perdemos no fogo que, para mim, é um conto de ficção científica no estilo de J. G. Ballard. Não creio que se possa definir o conto contemporâneo dentro de um gênero em particular. A menos que se chame algo como “weird fiction”, expressão em inglês da qual gosto por conta da sua amplidão e imprecisão. Os meus contos não oferecem certezas, nem mesmo de gênero.

• O seu originalíssimo e mais recente livro Este es el mar (ainda sem tradução para o português) toca em um assunto bastante em voga, o mito da personalidade, a construção de ícones pelo público e o convívio com seres não-humanos numa espiral vertiginosa de manipulação e ameaça à vida. Esta é uma criação que resulta quando se vive em um meio agnóstico?
Será que vivemos em sociedades agnósticas? Suponho que depende de qual sociedade: também vivemos em uma época de fanatismo religioso e, em países como a Argentina, o poder sutil da igreja pressiona para que não aconteça a descriminalização do aborto. O fenômeno do fanatismo me interessa e o amor de devoção pelos artistas; assim como me interessa o lado escuro do culto à celebridade que tem uma porcentagem alta de crueldade e que exige corpos para alimentar os mitos, corpos dos próprios artistas em certas ocasiões.

• No romance Este es el mar, você experimentou uma elasticidade que a permitiu passar pelo território das mitologias?
Sim. Imaginei uma genealogia de mulheres que vai desde as bacantes e mênades até as bruxas no conciliábulo ou, desde as mulheres que desmaiavam nos concertos de Liszt até as moças que seguiam Charles Manson, ou as fãs que gritam nos concertos de rock ou de Justin Bieber. Todas as mulheres em êxtase pela música, sexualidade e excessos. É uma figura recorrente e de enorme poder.

• Neste mundo de possibilidades, na rota da imaginação pura, com seres humanos, anjos, fadas, fantasmas, espectros de alma, existe a hipótese de uma história terminar? E a vida em si, acaba?
Nesse mundo, os seres estão vivos mas não têm vidas humanas. Possuem outro tipo de vida. E, portanto, outro tipo de história.

• Em João e Maria, duas crianças jogam uma velha anciã na fogueira — é costume que os contos de fadas sejam aceitos como são. Por que não evocam espanto maior? Como delinear o sentido de “macabro”?
Os contos de fadas sempre me assustam. Acontece que os contos de fadas estão destinados às crianças e, nesse sentido, nada é considerado “real”: a imaginação tem licença. Quando o leitor é adulto, a sua imaginação funciona de outra maneira, quem sabe com um entendimento melhor da crueldade. Entretanto, insisto dizer que os contos de fadas me assustam. Em João e Maria, a bruxa que os engorda para depois devorá-los me espanta muito mais (ela faz por merecer ir ao fogo). Os contos de fadas são avós dos contos de terror.

• O que seriam os elementos “muito argentinos” e os elementos “nada argentinos” no conjunto da sua obra? Os “desaparecimentos” como no seu livro Chicos que vuelven são algo de “muito argentino”?
Certas questões políticas são muito argentinas. Os cenários também: os bairros que menciono existem, eu os descrevo com bastante fidelidade, o mesmo se passa quando localizo um conto em alguma região do país que não seja Buenos Aires. Acredito que muitos personagens representam a classe média portenha, descendentes de imigrantes europeus, com suas formas de interagir e suas neuroses. Outros são os habitantes pobres da cidade, especialmente argentinos; também quando falo de migrantes vindos das províncias para Buenos Aires me refiro a um fenômeno que se sucede em todas as partes, mas que aqui tem as suas características particulares. Faço uso dos mitos argentinos como o Gauchito Gil, San la Muerte, ou de crimes e criminosos reais como no caso do conto Sob a água negra ou Pablito clavó um clavito: uma evocação do Baixinho Orelhudo, um assassino em série de verdade. É claro que os desaparecidos são uma triste “marca” argentina. Não saberia dizer o que é menos argentino, com exceção para o meu livro Este es el mar, um romance que não passa no meu país e em nenhum outro. Os lugares mencionados são espaços mais míticos do que reais.

 

A marginalidade sempre é mais interessante que o centro. As mulheres escritoras têm sido, de algum modo, sempre marginais.

• Os contos de terror tocam na nossa psique, atingem o subconsciente, a libido, o subliminar. O medo a aflige durante o processo da escrita?
Eu me divirto escrevendo contos de medo ou que provocam medo. Não me deixo influenciar também não. Encontro um enorme prazer. Naturalmente, devo ter sofrido os medos sobre os quais eu escrevo, porém no momento da escrita já não existem como tais. No processo da escrita, não me sinto dentro do “real”.

• Raimundo Carrero, colunista deste Rascunho, declarou em entrevista que a escrita lhe permite executar uma chacina sem maltratar a humanidade. É assim para você também? O autor é inocentado dos crimes cometidos sob a sua pena?
Não sinto que esteja cometendo um crime, nunca. E também acredito que a literatura tenha o direito de ser irresponsável.

• Os personagens podem ser domados/domesticados como animais?
Não. Os personagens sempre se rebelam. Mas se rebelam muito mais em um romance. Em um conto é possível usar rédeas, pelo menos, um pouco.

• O agrupamento de marginalizados e drogados em pontos urbanos tem sido uma realidade das grandes cidades em países ricos e pobres, a literatura possui alguma chance de resgatá-los?
Não. Também não lhe compete fazê-lo. É uma responsabilidade exclusiva do Estado.

• O escritor escolhe os leitores que o acolherão? Você já teve algum tipo de surpresa?
Não acredito que um escritor possa escolher os seus leitores. Tenho um leitor ideal que é aquele interessado na cultura pop, queer, leitor de gêneros e que não esteja demasiadamente imerso no mundo literário (o meu leitor ideal não é escritor, por exemplo, ou tampouco, um crítico literário). Possuo leitores muito variados mas prevalecem os jovens e as mulheres. Agora, eu me surpreendo com leitores que nunca tenham se aproximado antes de uma narrativa fantástica, de terror ou “weird”. Estes se espantam, descobrem que gostam e continuam buscando outros autores. Também me alegro ao encontrar leitores especializados que não encontram ficção fantástica, “weird” ou de terror em espanhol: quando consigo que os meus textos interessem a esse público que é muito exigente sinto uma enorme satisfação.

• Quais são as suas leituras atuais?
Muitas. Dos Estados Unidos: George Saunders, Kelly Link, Claire Vaye Watkins, William Gay, Cormac McCarthy. Da Europa: Sarah Hall, Amy Liptrop, Warsan Shire, Helen Oyeyemi, China Mieville, M. John Harrison, Neil Gaiman. Sempre Stephen King e Peter Straub. Em espanhol li recentemente Marta Sanz, Sara Mesa, Juan Cárdenas, Maximiliano Barrientos, Margarita García Robayo, Diego Muzzio, María Gainza, Elena Anníbali. São muitos. Leio constantemente.

• E os livros que gostaria de ter escrito?
Apenas um — O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë.

>>> Leia resenha de As coisas que perdemos no fogo

Katia Bandeira de Mello Gerlach

Mestre em Direito Internacional pelas Universidades de Londres e Nova York. Professora e escritora, Colisões particular(res) bestiais (Editora Oitoemeio, 2015) é o seu terceiro livro de contos.

Rascunho