Palavras de fogo

Pushkin estava certo: temos sempre a tendência a preferir o hábito, que é seguro e estável, à felicidade
Ilustração: Bruno Schier
27/01/2018

Em um célebre verso do poeta russo Alexander Pushkin, que reencontro assistindo à opera Eugene Onegin, de Tchaikovsky, colocados logo na cena de abertura, descubro um caminho para ler um livro que me perturba. Mais uma vez, o acaso age a meu favor. O livro, A perda de si, de Antonin Artaud, foi lançado recentemente pela Rocco em tradução de Ana Kiffer e de Mariana Patrício Fernandes. Trata-se, na verdade, de uma coletânea de cartas escritas pelo escritor francês entre 1923 e 1948, que agora vêm acompanhadas das devidas respostas. Pois bem, dizem os assustadores versos de Pushkin: “O céu nos envia o hábito/ como substituto da felicidade”. Versos certeiros, que resumem nossa precária condição, de seres paradoxais e insolúveis, fadados ao possível. Mas que colocam em dúvida, também, a própria ideia de felicidade — uma noção tão banal, que todos julgamos dominar. Felicidade: já não mais um estado idílico e harmonioso, um nirvana, mas uma luta, sangrenta e bárbara, e ainda assim potente, da qual tendemos covardemente a fugir.

Pushkin estava certo: temos sempre a tendência a preferir o hábito, que é seguro e estável, à felicidade, que se parece mais com um terremoto e deve ser conquistada a cada degrau. É dessa luta para ser, e não apenas para “ser feliz”, de que Artaud (1896-1948) nos fala todo o tempo. Fixo-me agora, em particular, em uma carta que Artaud escreveu em 23 de abril de 1947 a André Breton, o grande capitão do movimento surrealista. Ela já começa de forma devastadora: “Não te respondi porque estou doente e porque não aguento mais”. A dor que o agita tem origens bem precisas: “me dei conta que as palavras e os rugidos já não eram suficientes, e o que era preciso eram bombas”.

Falará Artaud por metáforas, ou se referirá ao sangue verdadeiro? A luta para chegar a si é, quase sempre, uma luta feroz, que não admite pudores, ou recuos. Não admite delicadezas, tampouco temores inúteis, parece nos dizer Artaud. É nesse estado de fúria permanente que o escritor francês se vê incapacitado de atender a um pedido de Breton, que lhe pedira um texto para a apresentação de uma exposição surrealista. Artaud, como sempre, toma as coisas pela raiz; não usa o pensamento como uma decoração, mas como uma punhalada. Recusa-se a fazer as coisas por fazer. “André Breton, já faz 30 anos que você me conhece, eu não quero escrever para um catálogo que será lido por esnobes, ricos amadores da arte, numa galeria onde não se verão operários nem gente do povo que trabalham todo o dia.”

Em definitivo, Artaud não está preocupado — não se deixa limitar, nem intimidar — pelo recurso da gentileza, ou da amabilidade, que podem ser o pior, o mais cínico, entre os disfarces do medo. Não está preocupado nem com as boas maneiras, nem com os bons hábitos. Volto às palavras apavorantes de Pushkin: “O céu nos envia o hábito/ como substituto da felicidade”. Com todos os riscos, todas as feridas, e mesmo sabendo que ela é inatingível, Artaud faz sua opção, sim, pela felicidade; que está longe de ser confortável e apaziguante; que está muito longe de resolver nossas vidas, ao contrário, vem apenas para complicá-la ainda mais. Vem não para provocar prazer, mas tremor. Admite Artaud ao amigo: “Há no seu projeto uma espécie de submissão aos ritos de iniciação que mais abomino no mundo”. Submissão: eis uma ideia com a qual Artaud se negava a negociar.

Artaud, na verdade, desconfia não apenas dos grandes conceitos — pátria, família, sociedade, espírito —, mas das próprias palavras. “Verbo, linguagem, são mantidas porque em realidade elas partem e não correspondem mais a nenhum real.” A felicidade mediana pode ser um grande embrulho vazio — e, portanto, felicidade (ferocidade) não será. Sabe que o caminho a seguir, o caminho em que talvez se possa descortinar algum futuro, só se fará por uma grande transformação. É direto, não poupa as palavras, nem as embeleza: “Enquanto não mudarmos a anatomia do homem atual, ele não fará nada nem para a poesia, nem por nenhuma espécie de real”.

Artaud não fala, em nenhum momento, na felicidade, mas que outra coisa ela poderá ser senão uma arte de ser? Essa arte não mantém vínculo algum com a beleza, a consagração, ou a glória; não se refere ao sucesso, ou aos aplausos; despreza as regalias e o gozo. Diante do mundo que nos cerca — do mundo igualmente cruel que cercava Artaud —, ele não via outra saída senão a luta. “Para remediar isso, André Breton, é preciso uma guerra, uma verdadeira guerra, com armas, munições e homens decididos a tudo.” Mas Artaud não foi um soldado. Sua delicadeza, sua fragilidade são conhecidas e me parece evidente que, enquanto escreve a Breton, ele pensa na verdade em uma guerra espiritual. Uma guerra do campo não só das ideias, mas do olhar e da percepção. Uma guerra interior como aquela de que tanto precisamos hoje também, perdidos que estamos em um mundo de clichês, de “convicções” vazias, de delações mentirosas, de avidez para consumir. Um mundo atordoado, ele também fora de si.

Corpo e liberdade: eis o centro do pensamento de Antonin Artaud. É disso que fala em todas as suas cartas: a respeito do acesso a si mesmo. Voltando à opera de Tchaikovsky sobre o poema de Pushkin: quando escrevemos uma carta, ela nem sempre se destina àqueles que imaginamos. Será que é apenas a Breton que Artaud escreve? Ou será sua carta destinada ao futuro, destinada a nosso tempo sombrio e traiçoeiro, destinada a nós mesmos? Pensando em Eugene Onegin, me ocorre a carta que Tatiana escreve a Eugene na qual declara sua paixão. A quem serviu realmente essa carta? A que interesses reais ela obedeceu? O que, de fato, significou? A carta, que guarda a aparência de um convite a um grande amor, é na verdade a destruição desse mesmo amor. Tatiana se dirigia a Eugene, ou a ela mesma? Esperava seduzir o amado, ou apenas convencer a si mesma de que um amor, evidentemente impossível, estava a desabrochar?

Pensando na carta de Tatiana, volto a pensar nas cartas de Artaud, que ele não escreveu apenas a seus amigos, mas escreveu para o futuro. Ele teve a nós, os homens de hoje, como verdadeiros destinatários. Lendo hoje, em pleno século 21, A perda de si, vem-me a certeza de que Artaud queria nos alcançar. Mais ainda: queria nos fuzilar com suas palavras de fogo. Queria, enfim, agitar, demover, destruir, os nossos estúpidos sonhos a respeito da felicidade.

A perda de si
Antonin Artaud
Trad.: Ana Kiffer e Mariana Patrício Fernandes
Rocco
176 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho