Tradução: um verbete

Nunca soube ao certo a diferença entre tradução e versão
27/01/2018

Nunca soube ao certo a diferença entre tradução e versão. Me pareciam termos intercambiáveis, talvez com nuanças ligeiras e quase imperceptíveis. Mas não. Nada é simples, e é sempre importante pesquisar as origens e os usos, inclusive diacronicamente, para identificar as diferenças e compreender melhor os sentidos.

Outro dia me deparei com o Dicionário de sinônimos da língua portuguesa, de Rocha Pombo, disponível na página de internet da Academia Brasileira de Letras. Trata-se de obra antiga, publicada originalmente em 1914. A segunda edição, a que da tela me chegou aos olhos, é de 2011.

Não é um dicionário de sinônimos simples, somente com lista de possibilidades para cada verbete (não que isso seja pouco…). Cada entrada recebe definição, acompanhada de comentários calcados em fontes históricas e, por vezes, com fundamentação etimológica.

O verbete “tradução”, em Rocha Pombo, tem como único sinônimo a palavra “versão”. É pouco, talvez, para vocábulo de significado tão rico. Mas que outros sinônimos se lhe poderiam acrescentar? O Houaiss não lhe dá sinônimo nenhum. O Dicionário de sinônimos disponível na internet (sinônimos.com.br) dá uma pletora de possibilidades, inclusive “versão”.

Mas voltemos a Rocha Pombo. Ele nos oferece essa única possibilidade. Contudo, logo a descarta, argumentando que, na realidade, trata-se de termos de significados distintos. Há uma gradação, que merece ser comentada. Para ele, versão é mudar o discurso de uma língua para outra; enquanto que tradução significa transportar o discurso de uma língua para outra. Parecido? Mas não igual.

Rocha Pombo argumenta que é mais fácil mudar uma coisa em outra, ou mudá-la de aspecto, do que transportá-la de uma parte a outra. A tradução, então, representaria processo mais dinâmico, carregado de energia cinética ausente na versão. Esta seria mais estática e, acima de tudo, mais mecânica. Rocha Pombo equipara a versão a uma espécie de tradução literal, em que o tradutor pouco põe de si, de seu espírito, de seus usos e gostos.

A versão implicaria uma espécie de reescritura sem alma, algo que até uma máquina poderia fazer — com todos os defeitos e toda a pobreza das coisas que se fazem sem alma. Seria uma cópia servil, quase desprezível. Segundo o dicionarista da ABL, a versão seria um tipo de tradução palavra a palavra, decalcando o fraseado do original e até sua gramática. Reproduzindo inclusive seus idiomatismos. Sairia daí um texto de sabor bastante estranho, com estrutura truncada — uma transposição canhestra, de baixo ou nenhum valor literário, que talvez só faça sentido para estudo histórico do texto.

Rocha Pombo traz à baila a tradução da Bíblia para o latim, a Vulgata, que, segundo autores por ele citados, seria uma “simples versão literal” dos originais gregos e hebraicos, com toda a pobreza espiritual que isso implica.

O termo “tradução”, em Rocha Pombo, conota processo distinto. Evoca trabalho mais meticuloso e, sobretudo, carregado de espírito. Ao texto traduzido o tradutor acrescenta algo de seu, algo de si. Transforma uma simples versão em texto verdadeiramente literário, conforme ao gênio da língua de chegada.

A versão seria espécie de estágio intermediário entre o original e a verdadeira tradução — etapa prévia que se pode usar como base para produzir texto com cariz literário. Seguimos por camadas: ao original aplicamos um primeiro revestimento, a versão, de caráter literal e parca qualidade literária; a seguir cobrimos essa versão com o texto final, a tradução, que incorpora tanto o espírito do tradutor quanto o gênio da língua de chegada.

É uma maneira de ver o processo tradutório. E é quase um pecado, concluo, considerar “versão” como sinônimo de “tradução”.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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