A morte de um poeta

Marcus Accioly viveu seus últimos anos numa certa amargura, porém escrevia todos os dias
Ilustração: Marcus Accioly por Fábio Abreu
27/01/2018

No final da manhã do sábado 21 de outubro de 2017, o poeta Marcus Accioly foi encontrado morto, na sua casa da ilha de Itamaracá. Em 21 de janeiro, iria completar 75 anos.

Marcus viveu seus últimos anos numa certa amargura (voltaremos a falar disso mais adiante), porém escrevia todos os dias — quase o dia todo. Vivia “enfurnado” na casa de Olinda ou naquela em que faleceu, na ilha, cercado de papéis e livros por todos os lados.

Rogério Pereira o conheceu, por ocasião daquela primeira (e única, que eu saiba) Bienal da Floresta, realizada em Rio Branco (Acre), pelo entusiasmo de um outro amigo já morto, o sociólogo e professor da UFRN Pedro Vicente Sobrinho, tragado para a sombra pelo câncer que lhe cortou aqueles muitos e variados entusiasmos dos quais seus amigos são saudosos de forma totalmente sincera. Além disso, era admirável também a generosidade do tipo que o fez reeditar o livro Yacala, de Alberto da Cunha Melo, nas oficinas gráficas da Universidade, e entregar a edição inteira ao poeta (que vivia em permanentes dificuldades financeiras etc).

Bem, o assunto é Accioly e voltemos a ele, num diálogo imaginário com o Pereira:

Vosmicê o conheceu naquela gentil capital acreana, Rogério, e estavam lá também o Gilberto Mendonça Teles (meio pomposo), o Jorge Tufic (divertidíssimo) e este escriba quase sarcofagado… e outros & outros. Havia um chato do Rio de Janeiro, poeta ainda jovem e badalado no Leblon, com ar condescendente de um literato da “Metrópole” que se sentia no cu do mundo, ali numa cidade cheia de pessoas tão gentis e dispostas a nos acolher como príncipes de pés de barro ou não.

Marcus, não sei se você se lembra, Rogério, fez um sucesso danado nas suas palestras para a garotada principalmente — escolares, gente muito jovem —, porque ele era obcecado por poesia, respirava versos doze, quinze, dezoito horas por dia e ia dormir não sei a que horas, para sonhar, talvez, com poesia dita com aquela sua bela voz clara e forte, todo corado, “galegão” já então de cabeça branca que tinha um ar travesso no olhar de “Guriatã”, de menino de Aliança na Zona da Mata pernambucana que marcava a poesia inicial de Accioly, quando nos conhecemos aí por volta de 1967.

Um outro planeta. O Brasil daquela década chegando ao fim era um outro planeta, se comparado com esta mediocridade que rasteja ignobilmente, agora, num aeroporto, para agredir — horrendamente — uma visitante ilustre como Judith Butler. Uma pessoa como Michel Temer seria, naquela época, um ascensorista (me desculpe a classe respeitável deles) do INPS, com o mesmo cabelo rigidamente penteado para trás, cheio de salamaleques das mãos de cadáver, ao contar dribles do Botafogo no máximo, e não um golpe parlamentar muito mais que vergonhoso.

Rogério, você não se lembra, não pode se lembrar da década de 1960, mas, acredite!, o povo lia. Naqueles tempos — conforme entoa a Bíblia —, o povo lia “Joaquins”, “Jornais de Letras” (os RASCUNHOS da época), suplementos literários como o Pernambuco que Schneider Carpeggiani leva avante — e fez uma Laura Erber dizer que ela se informa sobre Literatura em parte através dele — em tempos bicudos, bicudíssimos como estes a que nos levou, entre outros, um Hélio Bicudo bicando feiamente a própria biografia, ao convocar a quebra da Democracia, da jovem democracia que havíamos construído desde aqueles justos anos de combate ao outro golpe (o de 1964).

De novo, estou mais ou menos me afastando do assunto da morte de um poeta — ou não? (de novo).

Sem nenhuma dúvida, sempre vi Marcus Accioly como um meninão vaidoso com a cabeça galega atulhada de versos (isso eu já disse, eu sei), mas, Rogério, o que aconteceu foi que Marcus deve ter passado a se indagar, como Hölderlin e Roberto Piva: “E para que ser poeta em tempos de penúria?”.

Então, nos últimos anos, eu passei a encontrar um Marcus Accioly que já não compreendia bem o que se passava em torno. Isto é, um tempo de não-poesia, destoante daquela sua cabeça atulhada, um tempo louco e frio, um tempo que já não conhecia (nem parecia querer conhecer) nenhum dos 15 livros que ele publicou, e foram, alguns, agraciados com prêmios como o Recife de Humanidades (1972), o Prêmio Fernando Chinaglia (1980), o Prêmio Olavo Bilac da ABL, o da Associação Paulista de Críticos de Artes, o prêmio do…

Importam os prêmios, Rogério?

Para Marcus, importavam — mas importavam, ainda mais, os leitores que ele já não encontrava, aqui e ali, quando comparecia (cada vez menos) aos festivais e/ou bienais deste Brasil de agora, “Geek”, facebótico, internético de um modo que Accioly, francamente, detestava.

Como se homenageia um poeta — importante — que morreu meio do desgosto? Como se faz para levar pessoas, agora frias, a compreender o cálido coração da Poesia calada?

Talvez tentando imitar a voz forte e clara do poeta, declamando seus versos com olhos límpidos na tarde:

A prosa e a poesia se diferem
pelo mistério:
a casa era sem portas e janelas (…)
isto é prosa
a casa era de vidros e silêncios (…)
isto é poesia
pela música:
era uma vez um eco que dizia (…)
isto é prosa
era uma vez a vez a vez a vez (…)
isto é poesia
pela forma:
sob a luz apagada ele dormia (…)
isto é prosa
sob o peso da treva era o seu sono (…)
isto é poesia
pelo motivo:
a infância veio visitá-lo um dia (…)
isto é prosa
a infância acordou-se nos seus olhos (…)
isto é poesia
pela pintura:
o seu rosto era branco como o mármore (…)
isto é prosa
o seu rosto era um pássaro de nuvem (…)
isto é poesia
pelo equilíbrio:
o sol estava vertical no céu (…)
isto é prosa
o sol caía sobre a própria sombra (…)
isto é poesia
pelo movimento:
a flecha arremessada pelo arco (…)
isto é prosa
a flecha além do arco era uma asa (…)
isto é poesia
pelo ritmo:
era no dia o sol — na noite a lua (…)
isto é prosa
era no sol o sol — na lua a lua (…)
isto é poesia
pela força:
a lâmina brilhou sobre seus olhos (…)
isto é prosa
a lâmina de luz cegou seus olhos (…)
isto é poesia
pelo assombro:
o chicote vibrou como uma cobra (…)
isto é prosa
o chicote vibrou como um relâmpago (…)
isto é poesia
pela imagem:
dentro do rio era canção das águas (…)
isto é prosa
dentro do rio era a canção dos peixes (…)
isto é poesia
etc. etc. etc.
(…)

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho