Hermes e a tradução

Hermes é o tradutor, aquele que se espera, um dia, produza o texto mais pleno
30/10/2017

Hermes não era só o mensageiro dos deuses. Era deus ele mesmo. Era também o deus da interpretação, aquele que apontava o sentido correto, aquele que permitia a compreensão cabal. Os significados precisos passavam por Hermes.

A hermenêutica é também a arte da tradução. A interpretação plena que abre as portas para uma nova escritura, também ela inteira. Com todos os sentidos completos, definitivos, categóricos.

Como Hermes, o tradutor tem de exibir tirocínio perfeito. A capacidade de reduzir o significado a sua menor expressão. Encapsulá-lo para vertê-lo. Impedir, por um momento, a natural proliferação dos sentidos. A mais saudável hermenêutica.

A mensagem precisa ser única, afinal. Insofismável. Nisso Hermes trabalha. Trabalha na apreensão dos termos resvaladiços, que mais resistem a uma interpretação singular. Trabalha na elaboração de um texto que escorre escorreito pelo papel, em sua nova forma.

A mensagem recebida é transmitida na íntegra. Esse é o papel de Hermes. Saber ouvir. Calar. Depois, saber entregá-la àqueles que precisam conhecê-la.

Mesmo no caso dos significados já apagados pelo tempo. Mesmo sob o eclipse dos sentidos, Hermes ali atua. Sabe que a verdade não está aderida à palavra, nem nunca esteve. Conhece os caprichos das letras e seus descaminhos.

Conhece as palavras mais duras e as mais elásticas, de amplos significados. Acompanha com olhar atento as camadas de sentido que deslizam lentamente sobre a superfície da palavra, obedecendo aos ritmos dos tempos, aos relevos da geografia, às sutilezas das expressões culturais. Atenta também naquelas espécies de sentidos que penetram nas camadas mais fundas das palavras, impregnando-as, deixando-lhes marcas que mesmo a extensão do tempo e a amplidão do espaço têm dificuldade para apagar.

Sendo deus ele mesmo, Hermes se aplica à compreensão e à interpretação desses processos. Se concentra na delineação mais perfeita dos sentidos — adaptando seu desenho às circunstâncias, para alcançar a plenitude do entendimento na transmissão.

Se preciso, Hermes se empenha em aparar arestas. É preciso fazer chegar a mensagem aos ouvidos eleitos. Na recepção, os sentidos como que já aparecem alisados, livres de rugosidades agressivas infligidas pelo tempo, livres das rebarbas eriçadas pela erosão do uso frequente. Hermes cuida da interpretação e cuida também da expressão. Mensageiro que não só transmite, mas protege a mensagem.

Hermes conduz os sentidos por terrenos intransitáveis e os leva a seu destino incólumes, mas devidamente interpretados e traduzidos. O Logos, por Hermes, faz-se palavra inteligível.

A mensagem original, bem sabe Hermes, pode ser compreensível apenas aos iniciados. Cabe a ele, mensageiro e deus, cuidar que as palavras exprimam a verdade, mesmo aquelas que mais parecem velar do que revelar sentidos. Cabe a ele, velador da verdade, pôr velhos sentidos sob nova luz.

Hermes trafega longe no tempo e no espaço para levar a mensagem. Mais que mensageiro, formatou a mensagem ao cunhar o alfabeto. Criou a forma de expressão do próprio Logos.

O Hermes de que tratamos é o da hermenêutica mais fina, não o do arcano hermético.

Hermes é o tradutor, aquele que se espera, um dia, produza o texto mais pleno, a verdade vazada em palavras.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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