Resgatando obras

Jamil Snege e a potência lírica de "O jardim, a tempestade"
Jamil Snege, autor de “O jardim, a tempestade”
30/09/2017

1.
Pensamento que me assusta: há sete bilhões de pessoas neste planetinha. SETE BILHÕES. Porém eu sou a única pessoa que neste momento está se deliciando com O jardim, a tempestade, do paranaense Jamil Snege.

Gosto dessa sensação sublime e heroica de que um livro maravilhoso voltou a respirar e a brilhar — momentaneamente — graças a mim. E você? Qual livro brasuca você salvou do esquecimento, ao menos por um dia?

O sistema literário, semelhante a qualquer sistema organizado pelo sapiens, é um sutil campo de batalha. Na luta aparentemente educada pelo pouco espaço existente, há combates e morticínio. Certo verniz ilustrado camufla a violência, que persiste, subterrânea. Ocupações e fuzilamentos são mais frequentes do que imaginamos. Desprotegidos, tentando escapar da tortura e dos estupros, muitos refugiados submergem no oceano ou congelam nos desfiladeiros.

Vítima da luta sangrenta de todos-contra-todos no tabuleiro de nosso sistema literário, uma das mais fascinantes coletâneas de contos da literatura brasuca continua invisível, em silêncio, talvez no fundo do oceano, talvez num desfiladeiro gelado. Mesmo de longe, seu título ideográfico — O jardim, a tempestade — não deixa de me impressionar.

A capa é feia. A edição é simples, quase simplória. Mas isso nunca me incomodou de verdade. A potência lírica compensa qualquer impotência gráfica.

São contos brevíssimos — no total vinte e cinco, a maioria com menos de três páginas —, organizados em apenas oitenta páginas com margens generosas. A edição é de 1989, bancada pelo próprio autor. Não adianta procurar pra comprar, você não encontrará o livrinho em sebo algum, muito menos nas livrarias. Meu exemplar veio das mãos do próprio Snege, que me presenteou com vários livros seus, no final dos anos 90.

Já comentei em outras ocasiões o romance autobiográfico Como eu se fiz por si mesmo, a novela Viver é prejudicial à saúde e a coletânea de crônicas Como tornar-se invisível em Curitiba, todos excelentes, por diferentes motivos. Mas hoje percebo que meu livro predileto do Snege continua sendo este sensacional O jardim, a tempestade, que eu não tirava da estante havia exatos vinte anos, não sei por quê. (Talvez o porquê seja a lamentável inércia que nos abraça tediosamente depois de certo tempo vivendo, melhor dizendo, sobrevivendo no país da pasmaceira política e cultural.)

Não existe momento mediano nessa coletânea. Todas as vinte e cinco ficções, incluindo os seis poemas narrativos, são muito bons, ótimos ou excelentes. (De quantos livros é possível afirmar a mesma coisa? Não muitos.)

As obras-primas são O jardim, a tempestade, sobre uma menina apartada da civilização e totalmente integrada à natureza selvagem; Doce primavera, a respeito de um grupo de chacinados que do interior da morte denuncia a violência sofrida; Pacífico, S.W., sobre os habitantes de uma ilhota que não conseguem distinguir os vivos dos mortos; O olhar da negrinha olhando o crioulo, a respeito de uma garotinha deslumbrada com a figura sedutora de um negro com jeitão de rei nagô; e o intrigante Os poderes de Adam, sobre a influência maléfica de uma criatura de indefinida forma.

Que editora toparia participar do resgate desse livro magistral?

2.
Ficção científica e humor raramente se encontram na literatura brasileira. Não existe em nossa FC um equivalente ao revolucionário Macunaíma, de Mario de Andrade, ou aos irreverentes O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, e O púcaro búlgaro, de Campos de Carvalho. O romance de ficção científica que mais se assemelha a esses, na verve e na qualidade poética, é certamente o ciberbarroco Piritas siderais, livro de estreia do paulista Guilherme Kujawski.

O ringue da discórdia, em que escritores e leitores se estapeiam sem piedade, ainda é a linguagem literária. A grande maioria prefere narrativas de enredo complexo e linguagem simples (fluente, clara, objetiva). Então, quando surge uma obra de enredo simples e linguagem complexa (ambígua, obscura, subjetiva), essa inversão de golpes encanta uns poucos e enfurece a grande maioria, aquecendo o combate.

É o perene pugilato entre o registro popular e o erudito, em que perde feio quem sempre escolhe apenas um dos lados. Nesse banquete, sinal de inteligência é ficar com os dois menus, apreciar tanto as iguarias populares quanto as eruditas, que devem ser julgadas por conjuntos diferentes de critérios. (Sobre a questão dos critérios valorativos, recomendo o artigo Duas elites, publicado no Rascunho #120, janeiro de 2012).

A trama de Piritas siderais, lançado em 1994 pela Francisco Alves, ocorre num ponto qualquer do século 21, numa Terra de Vera Cruz marcada pelo politeísmo africano. Esse detalhe singular explica por que as metrópoles têm por patrono determinado orixá. A história transcorre mais especificamente em São Paulo de Orunmilá, com uma breve incursão a Campinas de Logun Edé. Os protagonistas café-com-leite são um negro de ascendência banta, Zé Seixas, e um branquelo de ascendência armênia, Terêncio Vale, cujo nome homenageia o canastrão Terence Hill, dos faroestes italianos da Sessão da Tarde.

Os antagonistas são uma deliciosa mestiça metade txucarramãe metade sudanesa chamada Maria Gonçalves, por sinal uma ialorixá extremamente sedutora, e um misterioso astronauta ianque, morto na explosão do ônibus espacial Challenger (ops, spoiler), chamado Berzelius Baldwin, um tipo esquisitíssimo — tão retinto quanto Zé Seixas — fissurado em ouro. O casal envolve a dupla desastrada de heróis num plano mirabolante pra trazer de volta à Terra um orixá escondido num planetinha feito do precioso metal, do sistema de Alpha Centauri.

Sustentando essa comédia de erros e acertos de humor bizarro, o leitor encontra três procedimentos discursivos, um mais excêntrico que o outro. O primeiro procedimento é a própria narração em prosa labiríntica, rica em filigranas, típica das poéticas extravagantes (barroco, romantismo, surrealismo etc.). Quem narra é “um espírito estafeta de Tobias Barreto”, um fantasma preso num banco de dados (ops, outro spoiler), que usa e abusa de metáforas e trocadilhos.

O segundo procedimento são as hipergazetas: blocos de frases absurdas, linques sem linques, nonsenses políticos e sociais que funcionam como oráculos, transmitidos por hackers e semelhantes, na luta contra o sistema oficial. Um dos passatempos prediletos de Zé Seixas é decifrar as hipergazetas: Timothy Leary e Graham Bell abrem plano de expansão da consciência, Tzar atira ersatz de quartzo na perestroika, Dodecafonia é a cacofonia da sinfonia desprovida de audiometria, Seteiras de castelo de areia desmoronam com temporal de clepsidra…

O terceiro procedimento é o linguajar esdrúxulo de Berzelius Baldwin, “um portunhol com sotaque de benim-luanda, grego linear-B, dravídico e indo-europeu”. Poderia reproduzir uns trechos, mas já estourei o limite de quinhentas palavras, então prefiro preservar a surpresa, caso estejam pensando em ler o romance.

A experimentação narrativa de Piritas siderais ampliou o território da ficção científica brasileira. Seu fluxo promove curtos-circuitos principalmente na sensibilidade do leitor pouco acostumado com a transgressão das vanguardas literárias. Considerando apenas o viés formal, é fácil ver que no breve romance de Guilherme Kujawski corre o mesmo sangue azul das Galáxias, de Haroldo de Campos, e do Catatau, de Paulo Leminski.

Que editora toparia participar do resgate desse livro magistral?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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