Quimera autoritária

Sérgio Buarque de Holanda, no clássico "Raízes do Brasil", parte de falsas premissas e observa mal o mundo à sua volta
Sérgio Buarque de Holanda, autor de “Raízes do Brasil”
30/09/2017

Publicado em 1936, Raízes do Brasil foi sucessivamente alterado durante três décadas por Sérgio Buarque de Holanda, processo que a edição crítica, de 2016, apresentou com minúcias, revelando a obsessão do historiador: não se tratou de perseverar numa determinada tese, mas de enrijecer o próprio pensamento, levando-o, cada vez mais fundo, à radicalização que lhe permitiria ser enaltecido pelas tropas marxistas do país.

Num estilo muitas vezes hermético — que o distancia da linguagem límpida do seu contemporâneo, Gilberto Freyre —, Sérgio está sempre pronto a torcer seu objeto de estudo até o desvirtuamento. Utiliza técnica curiosa, camuflada pelo linguajar erudito e pelos períodos às vezes labirínticos, mas que revela, ao final, ausência de penetração, insistência em obscurecer ao invés de aclarar, pois seu afã se resume não a permitir que os fatos falem, mas a submetê-los a determinados conceitos.

Nesse sentido, está sempre pronto a uma forma peculiar de indução: escolhe determinado exemplo — não uma série de casos semelhantes —, define-o e, imediatamente, generaliza, estende o resultado de sua magra observação ao conjunto da sociedade. Sérgio, é nítido, recusa-se à dialética que o diálogo pressupõe: mostra-se pronto a perguntar, mas a resposta que poderia descobrir na realidade é substituída pela generalização — no seu caso, uma forma de arrogância.

Veja-se, no Capítulo 1, como arranca da cartola a ideia de que estamos “desterrados em nossa terra” e, não importando nossos esforços, “o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima ou de outra paisagem”. De onde teria extraído tal veredicto? O leitor, persuadido de que Sérgio talvez defenda o New Look de Flávio de Carvalho, apresentado em sua Experiência nº 3, prossegue para encontrar outra generalização: apenas os países ibéricos teriam desenvolvido o que ele chama de “cultura da personalidade”, pois só portugueses e espanhóis atribuem “importância particular ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço”. Nisso residiria “muito de sua originalidade nacional” — nesses dois povos, “o índice de valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço, de suas virtudes…”. Tal forma de ser estaria fielmente espelhada na palavra “sobranceria”, cujas ideias de superação, luta e emulação “eram tacitamente admitidas e admiradas, engrandecidas pelos poetas, recomendadas pelos moralistas e sancionadas pelos governos”.

Ora, não é necessário grande conhecimento para perceber que semelhante argumentação se liquefaz com facilidade: se uma única palavra, “sobranceria”, basta para comprovar a índole de um povo, índole que conjuga independência e capacidade heroica de esforços, em que categoria deveríamos inserir os demais povos europeus? Pertenceriam a algum tipo sui generis de submissos? Ingleses, alemães, franceses, poloneses… em que nicho dessa categorização devem ser incluídos? Ou, ao contrário, a proposição, exatamente por seu caráter geral, serve, de uma forma ou de outra, a todos os povos? Mas se serve, de alguma maneira, à história de todos os povos, então não pode ser uma característica exclusiva dos ibéricos… e se a peculiaridade não existe… então o castelo de cartas acaba de cair.

Cadeia de falsidades
O grave problema é que uma generalização nunca está isolada nesse discurso — sempre leva a outra, criando uma cadeia de falsidades. No caso exposto, a tentativa de dar vida a uma operação de universalização leva ao coroamento do raciocínio: já que, entre os ibéricos, cada um basta a si mesmo, é dessa “sobranceria” exagerada que nasce “a singular tibieza das formas de organização, de todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. Portanto, “a falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um fenômeno moderno”.

O leitor não deve se assustar com a inexistência de interação dialética — Sérgio repetirá a mesma forma de raciocínio até a última página do livro, sempre forçando conclusões políticas e sociológicas. Como todo mau observador, é destituído do talento para realizar, repito, a interação correta entre o dado da realidade e o resultado que um pesquisador lúcido — ou imaginativo — alcançaria. Dizendo de outra forma, parte de falsas premissas e observa mal o mundo à sua volta, pois o que sobra entre nós é exatamente coesão na vida social. Característica que sobeja desde sempre, bastando, para refutar a tese do historiador, lembrarmo-nos da figura quase mítica de João Ramalho, cuja teia de organização social e comercial facilitou amplamente o trabalho dos primeiros colonizadores, incluindo os jesuítas, sem que houvesse necessidade de uma “força exterior respeitável e temida”. E se desejamos outro exemplo, lembremos do retrato que Manuel Antônio de Almeida expõe em Memórias de um Sargento de Milícias: em pleno período joanino, o povo já possuía identidade nacional, dava todos os sinais de uma permanente disposição à vida associativa.

Mas Sérgio Buarque constrói novas generalizações, pessimistas e repetitivas: dizer que, para espanhóis e portugueses, “a moral do trabalho representou sempre fruto exótico”, significa transformar a exclamação de Macunaíma — “Ai! que preguiça!…” — em síntese de uma civilização inteira, que, desde seus primórdios, refuta essa tese mal urdida. Ansioso por encontrar o fundamento de sua conclusão apressada, basta ao historiador o trecho de uma das cartas de Clenardus Brabantus, humanista que percorreu a Península Ibérica no século 16, na opinião de quem a agricultura sempre “foi tida em desprezo em Portugal”, concluindo, para júbilo do historiador: “Se há algum povo dado à preguiça sem ser o português, então não sei onde ele exista”. De fato, os portugueses não realizaram o maior empreendimento marítimo da história — sobrevivem até hoje refestelados em divãs, recebendo bonificações altíssimas dos ingleses, que amam seu vinho do Porto, e sendo abanados por velhas escravas angolanas. Aliás, se foi possível “construir uma pátria nova longe da sua”, isso ocorreu “sem esforço sobre-humano”, garante-nos Sérgio, mas principalmente graças à mestiçagem, prova de que não há, nos portugueses, ainda segundo o admirável pesquisador, nenhum “orgulho de raça”.

Conclusões superficiais
O leitor perdoar-me-á não só esta mesóclise, mas também as ironias do parágrafo anterior, pois não há outra forma de suportar essas conclusões superficiais, tratadas, há décadas, como o suprassumo do ensaísmo nacional. Entretanto, são compreensíveis os elogios desmesurados a Sérgio Buarque de Holanda, sempre enaltecido pela esquerda: o autor não perde nenhuma oportunidade de se colocar contra tudo que represente algum tipo de tradição, começando pelo núcleo familiar e sua capacidade para se manter “imune de qualquer restrição ou abalo”. A família patriarcal representa, para ele, elemento perverso, tirânico, preconceituoso e antipolítico, que jamais se submete ao Estado. E, da mesma forma, ele detesta o individualismo e a defesa do mérito pessoal.

Em contrapartida, anseia e defende, para o Estado, a “conquista de uma força verdadeiramente assombrosa em todos os departamentos da vida nacional”, não importando os meios a serem utilizados. Na verdade, faz defesa explícita da revolução, ao referendar o naturalista Herbert Huntingdon Smith, que, depois de percorrer o Brasil no século 19, implorou por “uma boa e honesta revolução, uma revolução vertical e que trouxesse à tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os velhos e incapazes”. Ideias que, logo a seguir, ganham sua verdadeira têmpera, quando Sérgio elogia Mussolini e o fascismo — “Não há dúvida que, de certo ponto de vista, o esforço que realizou significa uma tentativa enérgica para mudar o rumo da sociedade, salvando-a de supostos fermentos de dissolução” —, para imediatamente criticar, nos comunistas brasileiros, a falta da “disciplina rígida que Moscou reclama de seus partidários” e apontar o que considera “atraente” nessa outra ideologia revolucionária: a “tensão incoercível para um futuro ideal e necessário, a rebelião contra a moral burguesa, a exploração capitalista e o imperialismo”.

Comentando a respeito de nossos “homens de ideias”, Sérgio diz que foram apenas “puros homens de palavras e livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações”, o que “conspirou para a fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria asfixiada”. Ao supor os erros de outrem, ele consegue definir a si mesmo. Autor catequético, Sérgio Buarque de Holanda quis entender o Brasil e apenas desenhou uma quimera, monstro confuso e grotesco, mas dócil aos seus devaneios marxistas e autoritários.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Cyro Martins e Sem rumo.

Sérgio Buarque de Holanda
Nasceu em 11 de julho de 1902, em São Paulo (SP), e morreu na mesma cidade, em 24 de abril de 1982. Historiador e crítico literário. Participou do Movimento Modernista de 1922. Escreveu, como colunista ou correspondente, para vários jornais. Ocupou a cadeira de História da Civilização Brasileira, na Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da USP, onde foi o primeiro diretor do Instituto de Estudos Brasileiros. Membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT). Deixou, entre outras obras ensaísticas, Cobra de vidro (1944), Monções (1945) e Visão do paraíso (1959).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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