O espaço negativo

Conto inédito de Cristiane Bouger
Ilustração: Fabiano Vianna
08/08/2017

Todas as coisas estavam ali dispostas. As peculiaridades em seus devidos lugares, o silêncio habitando o espaço entre objetos. Por um momento a paisagem pareceu estar suspensa naquela tarde sem nuvem, como se desprovida de continuidade em qualquer direção no tempo. Som algum — fosse de pássaro ou folha, carro ou avião — se ouviu naquele instante solto de relógios. A luz atravessava os galhos da figueira e adentrava a janela iluminando o envelope sobre a mesa de imbuia. Sobre o papel pardo, duas fileiras de selos com escudaria medieval. A cada lado do brasão, um leão azul cobalto diante do seu duplo. Ornamentos monárquicos em vermelho e sépia adornam os leões, cintilando com a luz aveludada do fim da tarde.

Ela observa o envelope.

Sete anos haviam transcorrido até que o livreiro austríaco pudesse localizá-la. Agora o caderno de couro repousa sobre a mesa, abrindo um corte no tempo e anunciando o prelúdio de infinita contemplação a revigorar o íntimo de Clarice. Sem oscilar o gesto, ela abre o envelope e desembrulha o caderno protegido pelo tecido de algodão. Seus olhos reencontram as nuances do marrom e as pequenas marcas que o uso e o tempo imprimiram sobre a sua superfície macia. O cheiro do couro a atravessa, indelével. A memória acelera os sentidos atualizando fragrâncias, pontes e olhos estrangeiros — a livraria, um filme sem legendas, o casal tcheco em Istambul. Pelos nós dos cadarços de couro cru que amarram capa e contracapa, era possível reconhecer o trabalho meticuloso de um artesão com orgulho do seu ofício. Foi o que Clarice deduzira na tarde em que comprara o caderno, com a certeza de haver encontrado o presente perfeito para Antônia. Na parte inferior da contracapa repousava a assinatura de K. Franta, marcada com um carimbo de pressão.

Ela aproxima o caderno do rosto. Quer respirá-lo, sentir sua pulsação aderir ao invólucro que guarda a caligrafia tão querida. Sem pressa ela folheia as páginas com despretensiosa antecipação, lendo apenas palavras soltas na escrita flutuante de Antônia. Nenhuma palavra, nem mesmo uma sílaba ou artigo, toca as linhas das páginas. Clarice se vê absorta em uma fração de tempo suspenso, insubstanciável. Com os olhos fixos na caligrafia, percebe uma ansiedade quase controlável, um misto de entusiasmo e economia da própria expectativa. E qual criança que guarda o presente para fitá-lo em hora menos afoita, preenchendo-se da mesma alegria por duas vezes, ela aguardará o anoitecer para ler o caderno de Antônia. Observará agora apenas o contorno das letras, a parte superior dos tes sempre soltas a sobrevoarem erres e enes, como revoada de pássaros migrando pensamentos a cada página. Em seus traços a lápis, uma criança com longos cabelos ao vento, um tuareg, o perfil de um pássaro… Todos carregam expressões distintas, como personagens com promessas não reveladas. Na página ao lado, diagramas de mapas celestes, uma lista de sinônimos e um poema abandonado. Clarice olha em direção à janela, de onde vem o canto sem resposta de um pássaro na figueira. Ela coloca o caderno sobre a cômoda. Irá preparar a sua xícara de café, ainda suspensa na caligrafia.

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O caderno nas mãos e os olhos a atravessar o tempo. Um desejo lúdico e abstrato emana de Clarice ao reconhecer nas palavras de Antônia a expectativa e o ardor pelo novo. O perfume da alfazema no criado-mudo mistura-se agora à geografia dos Balcãs e do Tanger, enquanto ela observa a pressão da caneta sobre as folhas e a topografia que a escrita negra criou na gramatura do papel. Topografia revelada pelo detalhismo do seu olhar e pela cumplicidade com Antônia.

Clarice conhece bem estes espaços entre as letras, sua vazão e excedência. Entre os fluxos e camadas de sentido que pulsam naquela escrita, havia ainda uma série de informações não racionalizadas, mas preenchidas da existência a transbordar nos espaços negativos da caligrafia. Clarice sabia ler os espaços silenciosos, reconhecer a precisão dos começos em ges e erres alongados, presunçosos de uma espacialidade dilatada; mas também a suspensão das pontuações, declarando o vazio opaco e a sensação de impotência que marcavam a expressão no rosto de Antônia em dias menos calorosos.

Sempre fora assim. Antônia e Clarice criavam uma silenciosa cumplicidade sobre as particularidades de todas as coisas. Não havia espaço pequeno ou ação ordinária que subjugassem. Na disposição dos sabores sobre os pratos que preparavam ou nos desenhos com giz revelando a intimidade heroica e cômica do amor, teciam um pacto diário de detalhes que reafirmavam sua comunhão e o estado de querer-se bem.

Ler Antônia era como compartilhar não apenas do que os seus olhos viram, mas também de como absorveram as paisagens e os afetos. E ao finalizar um parágrafo ou chegar à síntese de um pensamento, Clarice voltava a se surpreender com a materialidade daquele caderno em suas mãos. Seu peso e sua textura tangíveis guardando todo o intangível na fina linha de uma escrita. Passava então, a contemplar a unidade precisa e íntima da caligrafia, divagando sobre sua capacidade de sobrepujar a morte. A escrita como prova da existência que ancorou ali o seu nome; não mais uma existência na cadeia de eventos, mas o registro de uma unidade de pensamento articulada em uma fração do tempo que nos supera e ultrapassa. Mas o que nos escapa também se inscreve em nós.

A ausência irreversível faz a lágrima escorrer pelo rosto de Clarice. Por que a ausência tanto nos aflige? Não seria a ausência um paralelo ao espaço negativo no qual repousa a escrita que contemplava ainda há pouco com leveza? Espaços não preenchidos onde se derrama o que não fora dito… não seria a nossa existência tão repleta destes espaços de ausência? E esta ausência, tão repleta de preenchimentos —u m paradoxo, sim. Um paradoxo que acompanha a nossa existência e a relação com tudo o que nos escapa. Que será, afinal, o tempo para o que cessa de mover-se?

Nas mãos de Clarice esta escrita passa a ressoar uma tessitura distinta, maleável. Torna-se não apenas o instante em que os olhos fixaram na retina cada uma daquelas apreensões, mas todo um conjunto de fibras formando um tecido complexo e vasto de reconstruções de acontecimentos e percepções que precedem o momento em que a ponta da caneta toca o papel e desliza marcando a sua superfície. Nas palavras escolhidas por Antônia e nos momentos que registrou havia a experiência viva e articulada de toda a sua existência. Na cadência da sua forma de transmitir pensamentos e também nas páginas abandonadas. Os espaços negativos — como são preenchidos em seu aparente vazio. Como são apenas aparentes, as ausências.

A noite avança. Clarice está prestes a adormecer com o caderno sobre o seu ventre, seus pensamentos entrelaçados aos de Antônia. Ao aroma de alfazema misturam-se o cheiro do couro e os efes esvoaçantes. Sob o céu marroquino, a criança de longos cabelos desenha azulejos geométricos. Leões em traços medievais adornam os seus cabelos. Inequívoco, o timbre da voz de Antônia: ela a convida para descer do carro e molhar os pés no mar.

E como é próprio do instinto e do entressonho, Clarice concentra-se na voz, temendo um dia esquecê-la.

 

Cristiane Bouger

Nasceu em 1977, em Curitiba (PR). Foi editora colaboradora do Movement Research Performance Journal (2006–2012, Nova York); escritora residente da Performa Magazine (2012-2013, Nova York). Em 2009, recebeu o prêmio de poesia da Brazilian Endowment for the Arts (EUA). Tem textos publicados nas revistas Bacamarte (2016) e Bólide (2014) e integrou a antologia Fantasma civil, da XX Bienal Internacional de Curitiba (2013).

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