Operário da ruína

A poesia de Augusto dos Anjos utiliza as duras engrenagens da ciência para escancarar de coisas minúsculas a abismos
Augusto dos Anjos, autor de “Toda poesia”
30/07/2017

No exílio, entre 1974 e 1975, às vésperas de compor o seu Poema sujo, Ferreira Gullar escreveu Augusto dos Anjos ou Vida e morte nordestina. O ensaio integra a edição de Toda poesia de Augusto dos Anjos, e, nele, o poeta maranhense discursa sobre uma espécie de guinada material ou concreta representada por escritores cujas experiências literárias e/ou de vida são inseparáveis do Nordeste ou do sertão. É assim que Gullar mobiliza um texto em que convivem as formas literárias do mineiro Guimarães Rosa (e do Grande sertão), do fluminense Euclides da Cunha (com Os sertões), do alagoano Graciliano Ramos (Infância), do pernambucano João Cabral de Melo Neto (principalmente com Morte e vida Severina) e do paraibano Augusto dos Anjos (com Eu).

Para Gullar, o que une essas obras, por questões aparentes ou de fundo, é a legião dos vencidos que se amontoa, tanto nos cemitérios de João Cabral, quanto debaixo da terra testemunhada por Euclides da Cunha quando do massacre da população do Arraial de Canudos da recém-proclamada república brasileira (desde cedo acostumada à truculência militar, naqueles tempos como neste). Se a poesia “moderna” poderia ser caracterizada como um abandono progressivo da poesia temática e abstrata das ideias higiênicas, isto é, do fazer apartado da lama suja do todo circunstancial, o texto destes escritores se aproximaria do programa moderno na medida em que não deixaria de se demorar sobre os elementos abjetos ou repulsivos.

É isto, talvez, o que possibilita que João Cabral, em O cão sem plumas, não apenas descreva, como opere com o ritmo “[d]o olho paralítico/ da lama”. No entanto, se há qualquer estagnação e demora nos versos cabralinos, em Augustos dos Anjos, segundo Manuel Bandeira, “só há calma nos primeiros versos”. É que, à tranquila enunciação de localidade, situação ou identificação (é o que parece suceder, por exemplo, em Psicologia de um vencido: “Eu, filho do carbono e do amoníaco”), sucede o caos das afecções tristes e do azar (“Monstro de escuridão e rutilância,/ Sofro, desde a epigênese da infância,/ A influência má dos signos do zodíaco”). Esta espécie de “crispação de demônio torturado” que, segundo Órris Soares, Augusto trazia nos lábios, forçava uma descontinuidade bastante específica: se em João Cabral, ela se dava entre o olho e o tempo, em Augusto dos Anjos, desmembram-se língua e ideia, como o denuncia o poema A ideia:

[A ideia] Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

E se o poeta sente a língua paralítica diante da límpida ideia, é porque, segundo as “Cismas do destino”, “Tal uma horda de cães famintos,/ Atravessando uma estação deserta,/ Uivava dentro do eu, com a boca aberta,/ A matilha espantada dos instintos”. A correção de “mim” por “eu” no verso de Augusto — um verso anterior à semana de 22 e à Guerra Mundial (Augusto morreu em 1914) — testemunha a disjunção entre espírito e matéria no poeta, o que resulta em uma produção desvairada de imagens, percebida por Houaiss como uso da técnica de enumeração caótica. “Eu” e “mim” se separam, possibilitando dois níveis de afecção pelas imagens, um tátil e outro ótico. Um sentimental, outro contemplativo. Eles se encarnam em Augusto — este poeta das “vísceras vulgares” que sistematiza “soluçando, o Inferno” — como exibição de um mundo cruel e decadente e como revolta contra ele.

Esta dupla atitude do poeta cindido é sintetizada nas múltiplas imagens do escarro e do cuspe, que atravessam os famosos Versos íntimos (“O beijo, amigo, é a véspera do escarro”), mas que talvez se exiba juntamente com a sua justificativa em As cismas do destino:

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo! 

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!

Lirismo e ciência
Essa cisão do espírito e da matéria foi sentida por Anatol Rosenfeld como uma espécie de “unidade dialética” entre lirismo e ciência. Talvez seja esta a marca de Augusto dos Anjos: ter introduzido em sua poesia — a meio caminho do parnasianismo, a meio caminho do simbolismo — as duras engrenagens da ciência que lhe foi contemporânea. Rosenfeld fala de uma espécie de “sedução dir-se-ia erótica que sobre ele [Augusto dos Anjos] exercem os termos científicos”. Para Gullar, um dado situacional e prosaico, onde se “revela, por trás desses elementos aparentes” uma “realidade doméstica, familiar e provinciana”. Para Rosenfeld, trata-se de uma “exogamia linguística” que “recorre ao termo especializado precisamente em consequência da sua artificialidade esotérica, um elemento alienígena que revela, através da sua alienação radical e sem concessões, a alienação encoberta da língua histórica que, em determinado momento, já não exprime a ‘coisa’ e, atrasada, se alheia dos significados em plena revolução”.

Cotidiano ou extemporâneo, outro elemento pode redimir as explicações aparentemente excludentes de Gullar e Rosenfeld a propósito do vocabulário mobilizado por Augusto. Trata-se daquilo que o poeta paraibano chamou de “forma vermicular”, uma espécie de produção por semelhança ao verme, este “operário das ruínas/ Que o sangue podre das carnificinas/ Come, e à vida em geral declara guerra”. Em sua poesia de extremos, que estuda coisas tão minúsculas como a anatomia da ruga e escuta outras grandiosas como as vozes do abismo e do destino, há ao menos um termo médio: a mortificação absoluta pelo verso. Se, em sua poesia, o mundo se divide em vencedores e vencidos, o poeta reconhece nele mesmo “coberto de desgraças,/ O resultado de bilhões de raças/ Que há muitos anos desapareceram”. A morte é uma obsessão de Augusto pelo poder que encerra de nivelamento por baixo, e por isso seus versos são como vermes que operam a ruína em tudo o que tocam. Por isso, também, Augusto pode ver o seu tempo como uma carne em que seus versos colocam ovos — a enumeração caótica é a proliferação verminosa consequente não apenas da “técnica”, como também da visão de mundo de Augusto. No poema Deus-verme um nome secreto para Eu se anuncia: “Verme — é o seu nome obscuro de batismo”.

A morte nivela os extremos: ela opera como meio ambiente universal. Por isso também o amor só se mostra com força diante dos cadáveres apodrecidos, como nos tercetos dedicados ao pai morto, e naqueles dedicados ao filho, respectivamente:

Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins

e:

Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!

Sobre estes versos, Gullar comenta que “é como se a poesia tivesse que descer ao mais sórdido da miséria humana para, aí, iluminá-la”. Aqui, como em O cão sem plumas, de João Cabral, a poesia aparece como uma espécie de resistência, ou ainda, uma insistência em sustentar o olhar diante da tragédia humana. Augusto dos Anjos se converte em operário da ruína: como verme, sintetiza a imagem daquele que empresta para outro a sua força de trabalho, subjugado; e também a da cidade saqueada, triste memória da interrupção de um povo. Em Viagem de um vencido uma estrofe serve de epitáfio crítico para o poeta:

(…) naquela noite de ânsia e inferno,
Eu fora, alheio ao mundanário ruído,
A maior expressão do homem vencido
Diante da sombra do Mistério Eterno!

Toda poesia
Augusto dos Anjos
José Olympio
317 págs.
Augusto dos Anjos
Nasceu em Engenho do Pau d’Arco (PB). Morreu em 1914, aos 30 anos de idade, deixando uma única obra, Eu, e diversos poemas não editados em livro.
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

Rascunho