Trilogia da perdição

Em torno da maldade três obras se conectam, se refletem, pavorosas
Ilustração: Eduardo Souza
30/07/2017

Maldade. Essa é a primeira palavra. Maldade-do-corpo ou corpo-da-maldade? Essa é a primeira questão. Em torno dela três obras se conectam, se refletem, pavorosas. Três narrativas ocidentais.

A primeira foi escrita numa prisão, com letra minúscula, num um rolo de papel com doze metros de comprimento. Estamos no século 18. A segunda foi escrita oitenta anos depois e logo publicada (sob pseudônimo), mas não escapou das críticas violentas e do repúdio. Estamos no século 19. A terceira foi publicada noventa anos depois e processada judicialmente, acusada de obscenidade. Estamos no século 20.

Todas as três torcem & distorcem o corpo humano de tantas maneiras, com tamanha violência, que não dá pra ficar indiferente. A leitura insensível ou descompromissada jamais será uma opção. Querendo ou não, somos forçados à dor da empatia.

Três livros demoníacos. As descrições mais frequentes em resenhas & ensaios não conseguem evitar as palavras de mau agouro: humilhação, sadismo, incesto, pedofilia, perversão, estupro, tortura, assassinato, necrofilia. canibalismo… A primeira narrativa foi adaptada para o cinema por Pasolini, a segunda ainda não entusiasmou nenhum cineasta, a terceira foi adaptada por David Cronenberg.

O Marquês de Sade considerava Os 120 dias de Sodoma “a narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe”. Alguém nega? Esse romance nauseante é na verdade um extenso catálogo de aberrações insuportáveis. O primeiro de seu gênero.

Quatro libertinos sórdidos, escravizados pela luxúria mais aberrante, escravizam quarenta e duas pessoas de idade variada e as submetem a provações ultrajantes. O corpo abjeto somente se satisfaz maltratando outros corpos, abjetos ou não. Apenas da humilhação e do sofrimento de outros corpos, abjetos ou não, obtém prazer o corpo abjeto. Que tipo de prazer? O único prazer possível para cinco sentidos embrutecidos pelo vício, impermeáveis a qualquer beleza ou sutileza sensual ou estética.

Ele fode uma cabra de quatro enquanto o açoitam. Ele faz um filho nessa cabra, que ele enraba por sua vez, embora seja um monstro. (…) Ele torna eunuco rente ao ventre um mocinho de dezesseis a dezessete anos. Antes, enraba-o e açoita-o. (…) Quer uma donzela; corta-lhe o clitóris com uma navalha, em seguida, deflora-a com um cilindro de ferro quente, que ele enfia a marteladas. (…) Ele gostava de foder bocas e cus muito jovens: ele aperfeiçoa sua paixão arrancando o coração de uma moça viva; faz um buraco nele, fode esse buraco quentinho, e coloca o coração de volta no lugar com sua porra dentro.
[ Tradução de Alain François ]

Diante de tanto horror, o grito indignado & engasgado é inevitável:
Parem de me estuprar, estuprando o corpo outro.|
Parem de me apunhalar, apunhalando o corpo outro.
Parem de me afogar, afogando o corpo outro.
Parem de me enforcar, enforcando o corpo outro.
Parem de me despedaçar, despedaçando o corpo outro.
Parem de me empalar, empalando o corpo outro.
Mas a maldade magnetiza, aborta fetos & afetos, atrai malfeitos & defeitos.

André Breton e os surrealistas amavam a maldade bestial de Os 120 dias de Sodoma, do Marquês, mas amavam mais ainda a maldade luciferina de Os cantos de Maldoror, do Conde. Francis Ponge dizia que esse livro, quando aberto, vira do avesso & eviscera toda a literatura universal, que só volta ao normal quando o monstruoso livro de Lautréamont, cheio de más intenções, é fechado.

A voz bafosa de Maldoror espalha a calamidade do mau cheiro e do mau gosto que denunciam a putrefação do Todo-Poderoso e de sua pior criação: nós. A voz bafosa de Maldoror afirma que somos TODOS um só corpo abjeto. Que a filantropia é outra forma de perversão. Que somos essencialmente podres & ignorantes. Que até mesmo os mais caridosos disseminam, sem saber, o mal que pretendem combater.

Fiz um pacto com a Prostituição, a fim de semear a desordem nas famílias. (…) os adolescentes que encontram prazer em violar o cadáver de belas mulheres mortas há pouco… (…) Maldoror vê uma menina dormindo à sombra de um plátano; joga-se sobre o corpo da mocinha, depois ordena ao buldogue que estrangule, com o movimento de suas mandíbulas, a menina ensanguentada; o buldogue se contenta em violar por sua vez a virgindade da criança delicada; Maldoror tira do bolso um canivete americano, escava corajosamente a vagina da pobre moça e retira do buraco alargado os órgãos internos, os intestinos, os pulmões, o fígado e finalmente o próprio coração. (Trecho editado por mim)
[ Tradução de Joaquim Brasil Fontes ]

Maldade ou maudade raramente é apenas uma questão ortográfica. Os cantos de Maldoror repetem o repulsivo catálogo de estupros & assassinatos. A leitura torna-se uma tortura deleitosa, impossível de interromper. Mas o grito indignado & engasgado também é inevitável:

Parem de me cegar, cegando o corpo outro.
Parem de me envenenar, envenenando o corpo outro.
Parem de me estrangular, estrangulando o corpo outro.
Parem de me balear, baleando o corpo outro.
Parem de me eviscerar, eviscerando o corpo outro.
Parem de me devorar, devorando o corpo outro.

Mais próxima de nós, a prosa poética de Almoço nu é viciante & viciosa. Cenas repugnantes & reflexões perspicazes se alternam, expondo as vísceras do complexo sistema da alquímica dependência química. A mente chapada modifica a realidade, vampiriza o corpo outro, sugando seus fluidos vitais.

No depravado romance de William Burroughs, que não era marquês nem conde, mas tinha o sangue azul-cobalto de um barão da heroína e das anfetaminas, nem o protagonista escapa da degradação física & moral. Além da amoralidade, outro dado conecta este livro aos dois livros já comentados: Almoço nu foi lançado em território francês, mais liberal, antes de se lançado no puritano território ianque.

Ágil, Mark estende o braço e quebra o pescoço de Johnny… é o som de alguém quebrando um graveto envolto por toalhas molhadas. (…) Com os dentes, Mary arranca os lábios e o nariz de Johnny e suga seus olhos com ruído… Dilacera pedaços enormes da bochecha… Almoça seu cacete… (…) Enquanto ajusta a forca em um dos cantos da sala, Mark deixa Mary amarrada sobre o patíbulo, em meio a uma pilha de camisinhas usadas… então retorna carregando o laço em uma bandeja de prata. Faz Mary levantar-se com um safanão e ajusta o nó da forca. Mete seu caralho na garota e valsa pelo patíbulo, até deixar sua superfície e balançar-se no vazio…
[ Tradução de Daniel Pellizari ]

Os crimes mais desprezíveis atingem não somente as pessoas-objetos, mas principalmente o abjeto sujeito da narração. É a apoteose dos pecados sociais e dos vícios capitais. É a justificativa maior da grande arte, pois é preciso concordar que todas as obras-primas da narrativa apoiam-se na violência, na tragédia. Até mesmo as comédias mais inocentes precisam, pra ficar em pé, de um bom conflito. De uma injustiça. De uma violência humana ou divina, mesmo pequena.

O sujeito abjeto e a tortura do corpo outro, às vezes implicando a autotortura do próprio sujeito abjeto: não há empatia nem catarse fora dessa equação perversa. O que varia de obra pra obra é o grau da violência, da tragédia, que nos casos mais brandos costuma ser mais ontológica que pragmática, mais psicológica que física.

O que diferencia Sade, Lautréamont & Burroughs do resto dos autores é a suprema intensidade do mal. Como se o botão da sintonia tivesse sido girado violentamente pra direita, forçando à potência máxima o delírio demoníaco.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho