Beatriz, a tradutora

Enfim um romance sobre a tradução. Ou sobre o tradutor
Cristovão Tezza, autor de A tradutora
30/07/2017

Enfim um romance sobre a tradução. Ou sobre o tradutor. Ou melhor, sobre a tradutora. É Beatriz, protagonista de obras anteriores de Cristovão Tezza, que reaparece em nova roupagem. Em A tradutora, Beatriz envereda pelos meandros desse ofício antigo e maltratado. Entra, talvez, como todos nós: sem muita cancha, como amadora, como exploradora, em troca de alguns trocados a mais. Não que não tenha, de alguma maneira, afinidade com o ofício. Milita nas letras, afinal. Mas sabe-se lá se tem formação na área, alguma base teórica, algo que lhe dê direção certa e segura. Não parece ter.

Pouco importa. Não é um romance sobre a tradução. A tradução vai e vem, aparece de quando e quando e nos surpreende com bons lampejos sobre o ofício. É um tema ocasional no romance, embora o perpasse. Para Beatriz, é uma profissão ocasional. Não é uma profissional do ramo, como o era Ricardo Somocurcio, o protagonista de Travesuras de la niña mala, de Mario Vargas Llosa.

A filosofia do catalão Felip T. Xaveste emerge ocasionalmente no texto, sob a tradução de Beatriz, introduzindo momentos de reflexão sobre política e tradução. Beatriz talvez não deixe suas opiniões se intrometerem no texto traduzido. Mas as dúvidas ficam ali registradas. É apenas um rascunho. Não lemos o texto traduzido em sua versão final. Pouco importa. As dúvidas, essas sim, nos importam. Ficam ali, registradas entre colchetes no texto traduzido, que se entremeia no texto do romance.

Nos colchetes, as dúvidas, as perguntas, as alternativas. A construção da tradução. A procura da palavra ou expressão perfeita para a ocasião. A tentativa de escapar do fácil, a preocupação com a estética, a fuga da repetição, de rimas e aliterações. É dentro dos colchetes que Beatriz revela detalhes, mesmo que esparsos e incompletos, de sua estratégica tradutória. Uma tradutora sem opiniões, mas consciente.

Vemos nos pensamentos e falas de Beatriz alguns belos raios cromáticos, que nos inspiraram reflexões. Às vezes Beatriz se comporta como a tradutora invisível, no melhor estilo de Lawrence Venuti: indica que a opinião do tradutor é irrelevante para quem traduz, no momento da tradução. Pensamento deveras polêmico. Beatriz, a tradutora, acha até bom “fazer uma suspensão total de juízo enquanto traduzo — só o autor deve falar, e sempre nas palavras dele, se isso for possível”. Deixa a dúvida no ar. Será isso possível? Não é boba Beatriz.

Às vezes se sente uma máquina de tradução. Impressão que costuma assaltar a alma dos tradutores. Perceber-se operando um processo mecânico, nada mais. Espécie de médium entre o além e este mundo, entre o original e a tradução. O texto apenas flui através dela. Ela, a tradutora, não precisa emitir opiniões nem se envolver emocionalmente com o texto. Será isso possível?

Talvez, em algum momento, seja preciso desviar os olhos dos textos, original e tradução, para encontrar certo espaço de reflexão. Espaço do qual possamos sair com uma direção mais definida. Uma orientação que dê sentido ao novo texto. Não sei se Beatriz, a tradutora, concordaria. Parece que não.

Beatriz não é uma profissional da tradução. Comenta jocosa com a amiga que “tradutor não pensa, tradutor traduz”. Ela quer uma tradução fiel. Fiel e sonora, boa e sonante. A eterna tensão entre a necessidade de repetição mecânica, sem opiniões, e a preocupação com a estética da língua de chegada.

Não vou julgar Beatriz. Ela não será julgada pela tradução, nem por suas ideias sobre tradução. Tampouco será julgado por isso o romance. Pouco importa. O que importa, para o tradutor, é ler, ali na página 189, que “a palavra estrangeira sempre nos chega sem emoção ou história, é apenas uma ideia de palavra envolta numa cadeia estranha de sons”. Cabe à tradutora dar-lhe sentido.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho