O enigma do olhar nos criadores

A narrativa do romance não pode ser linear nem lógica
Ilustração: Tereza Yamashita
30/07/2017

Sempre acreditei — e acredito sinceramente — que a narrativa do romance não pode ser linear nem lógica. Até porque trata da condição humana e os personagens têm pulsações diferentes, sem esquecer, é claro, o leitor, cuja participação na montagem da história é decisiva e cujo olhar é, portanto, decisivo. A técnica do olhar deve ser usada, sobretudo, pelo escritor cuja preocupação principal é o texto.

Tenho refletido muito sobre este assunto na coluna que escrevo aqui, mensalmente, porque não posso acreditar que a ficção seja apenas um amontoado de episódios reunidos por palavras que se juntam e se misturam para comover o leitor sem qualquer cuidado técnico. O chamado romance de histórias, às vezes com algum enredo. Sendo assim, basta escolher uma mocinha que sonha com o amor, encontra um mocinho belo e saltitante que lhe satisfaz os desejos mas descobre que está com leucemia, condenado à morte. Como se todos nós não estivéssemos condenados à morte.

Esta literatura de diversão e horror — lágrimas e emoções fáceis, destacadas por resenhas que ressaltam a penúria dos personagens — é resultado da estética da vendagem a todo custo implantada pelo cinema e pelas editoras norte-americanas, sempre dispostas a caçar níqueis em qualquer lixeira de supermercado. E que pode revelar, também, o bom criador de personagens.

Ocorre que nem sempre o enredo é a técnica mais importante de uma história. Basta lembrar Um coração simples, de Flaubert. Assim há os escritores de texto, como há os escritores que se destacam pela criação de personagens. Ou até mesmo os criadores de enredo. São muitas as técnicas que destacam escritores.

Para uma possível tipologia de escritores, no sempre vasto universo literário, podemos, então, classificá-los assim: escritores de texto, de personagens e de histórias e enredos, sem que um seja superior ao outro, embora me coloque sempre ao lado do escritor de textos.

Isso não quer dizer que a classificação seja estanque — há escritores de texto que são também ótimos criadores de personagens e de histórias e enredos.

Graciliano Ramos, por exemplo, é um grande escritor de textos e de personagens, sem reservar atenção especial à história e ao enredo. Tanto é verdade que criou o romance desmontável. Talvez uma história sem enredo, ou sem aquele enredo mirabolante circulando as intrigas e a eloquência dos fatos. Ainda mais, Graciliano Ramos é o introdutor do personagem inominado na literatura brasileira — casos do soldado amarelo, do menino mais velho e do menino mais novo. Em Vidas secas, o menino mais velho é construído pelo olhar do personagem a Fabiano, o pai… Lembrando, ainda, o caso de Erico Verissimo, que embora às vezes descuide do texto, tem preferência pela criação de personagens, com destaque para os romances de O tempo e o vento.

Temos que destacar, também, o estilo híbrido de Clarice Lispector, cuja base estética é o texto, embora sem perder as qualidades de ótima criadora de personagens — destacando-se Jana, de Perto do coração selvagem, e de Macabéia, de A hora da estrela, lembrando, sobretudo, que o olhar do narrador Rodrigo S. M. é o responsável pela criação de Macabéia. Ele diz que viu o rosto de uma nordestina desamparada numa rua da cidade. É aí que nasce a personagem e onde se revela a criação da personagem. Completamente. Aí se revela, sem dúvida. O olhar do personagem, conforme vem sendo demonstrado aqui.

Em Machado de Assis, há sobretudo o caso de Dom Casmurro, cujo texto é uma grande digressão através do olhar de Bento Santiago, já não digo físico, mas sobretudo emocional. Dom Casmurro começa dando informações de um personagem sem importância para o livro, mas cuja antipatia termina definindo o título do livro que, afinal, não fala de dom Casmurro, mas de Bentinho e de Capitu. Até porque a técnica neste livro é superior à criação de personagens. E o olhar, principalmente, circula em todas as direções, principalmente dos personagens.

Para que tudo isso pudesse acontecer é preciso lembrar as transformações que o romance sofreu entre os séculos 18 e 19. Até meados do século 19, o romance representava a defesa de ideias dos autores por meio de uma história com os seus múltiplos personagens. Por isso eram longos e laudatórios.

A partir dos meados do século 19 surge a obra de Flaubert disposto a transformar o romance, ou mais exatamente, a obra de ficção em arte. Não bastava apenas contar uma história ou defender ideias. Era — e é — transformar cada romance em obra de arte, cuidar de cada palavra, de cada frase, de cada oração, de cada parágrafo. Justificava que se a poesia tem zelo pelo verso e pela estrofe, fazia-se necessário que a prosa de ficção tivesse os mesmos cuidados, tratando da palavra, da frase, do personagem, da cena, do cenário e dos diálogos, abrindo espaço para o olhar e para as digressões, mais tarde para os monólogos e para o fluxo da consciência. Flaubert abriu portas para todas as técnicas. Daí em diante a ficção mudou completamente. Até chegar ao tempos de hoje, tanto no Brasil como na Europa, passando pelas revoluções literárias de Joyce, de Alain Robbe–Grillet até chegar, por exemplo, ao realismo mágico da nossa América Latina.

Novos tipos de ficcionistas
Apesar da revolução de Flaubert e de grandes artistas da palavra, a exemplo de Joyce, na Europa, e, mais tarde, de Faulkner, nos Estados Unidos, e, é claro, dos movimentos de vanguarda da América Latina, incluindo aí o brasileiríssimo Modernismo, muitos escritores continuaram usando os romances para difundir ideias e, mais tarde, a autoajuda.

A segunda parte do século 20 foi marcada, sobretudo, pelo romance ou pela ficção de ideias, marcantemente usado por Sartre e por Camus, sobretudo. E pelos ideólogos.

A partir daí surge a estética da vendagem promovida pela indústria editorial, cujo principal capítulo se resume a proclamar: pouco importa a qualidade, interessa a vendagem. Daí produzindo-se, em larga escala, o chamados best-sellers através de autores do tipo Sidney Sheldon, Irving Wallace.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho