Dias secos

Conto Inédito de Ewerton Martins Ribeiro
Ilustração: Matheus Vigliar
01/06/2017

1.
No 14º dia sem água, a violência rebentou. Pais com bebês pequenos foram os primeiros a invadir as casas dos vizinhos em busca de algo líquido que pudessem oferecer aos filhos. Se encontravam algum adulto na casa, a luta era sempre fatal.

De início, atacaram as casas dos idosos solitários, talvez por algum restolho moral: entre um idoso e um jovem, que morresse aquele com menos tempo de vida pela frente. Desconfio, contudo, que no fundo o motivo fosse mesmo a melhor chance de vitória nos combates. Ou como se passou a dizer entre as gangues que se formavam: atendimento preferencial.

Logo os pais com bebês pequenos passaram a focar também as casas em que moravam outros pais com crianças pequenas. Se a chance de vitória agora se reduzia a cinquenta por cento, o prêmio se tornava bem mais atraente: naquelas disputas o vencedor conquistava tudo o que o outro pai pudera coletar até então e ainda passava a contar com um pai a menos em sua área.

2.
No 17º dia, o discurso ambíguo de um governante na tevê livrou-nos todos da culpa que restava. O político disse algo sobre honra, sobre crianças como prioridade absoluta, sobre deus estar acima de tudo e de todos e olhando por nós e sobre aquele ser um tempo de medidas extremas. Entendemos o que quisemos daquele medidas extremas e logo passamos a fazer de tudo por nossa sobrevivência, sem arrependimentos nem limites, alheios a toda ética e moral. Dali em diante, foi tudo pela água.

Nunca mais vimos aquele político novamente, e depois daquele pronunciamento não veio mais notícia do poder oficial. O último canal de televisão parou de transmitir no 19º dia. Com efeito, mesmo que tentassem voltar, a energia elétrica já havia se tornado instável desde a segunda semana; logo fora interrompida de vez, tornando impossível toda comunicação tecnológica. Aqueles já eram tempos áridos, mas sabíamos que o futuro que nos aguardava seria ainda pior.

3.
No 30º dia sem água, a maioria das mulheres já não saía mais de casa. Se algumas se aventuravam a disputar as ruas com os homens, é porque eram fortes como eles. Mesmo assim, só se davam ao risco porque a sede lhes roubava o juízo — ou porque tinham filhos pequenos: mães com bebês pequenos aprenderam cedo a lutar.

Quando começou o segundo mês sem água, as ruas já estavam tomadas pelo estupro. Estupravam-se os mais fracos, fossem eles homens ou mulheres. Mulheres estupravam mulheres, sempre o mais forte subjugando o mais fraco — ou o nonsense coletivo subjugando a frágil argúcia da individualidade. Homens estupravam crianças, que o ser humano, quanto menor, mais fraco é. Até mesmo os grandes animais eram vistos fugindo dos homens, tempos aqueles em que já não nos lembrávamos das regras morais que poucas semanas antes ainda insistíamos em cagar, altivos.

No 47º dia sem água, poucas eram as famílias que ainda se estruturavam em função de parentescos. Os mais fortes agrupavam-se entre si, em constante tensão. Agremiados, tomavam facilmente os mais fracos e repartiam os lucros entre si.

As mulheres mais fortes passaram a se agremiar em facções sexistas. Mesmo para elas era inviável conviver com os homens quando em bando: o estupro estaria sempre à espreita, à espera da mínima distração. Ninguém mais dormiu.

4.
Ainda no fim do primeiro mês sem água nós todos já percebemos que não haveria mais espaço para afetos fraternais. Muitos insistiram por alguns dias em manter viva alguma coisa de nossa subjetividade, mas em geral já sentíamos, no corpo, que só a sobrevivência importava. Justamente por isso, nem tanto se estranhou quando alguns pais passaram a abandonar seus filhos para se juntar aos bandos mais fortes. Alguns, ao que se diz, sacrificaram seus descendentes em mortes não violentas. Em tempos extremos, medidas impensáveis fazem-se provas de amor.

No 72º dia sem água, a população havia se reduzido a um terço. Corpos apodreciam por todo canto. Dadas as restrições a que ficamos impostos, ninguém se disporia a gastar energia cavando covas, arrastando carcaças, fazendo qualquer coisa que não fosse uma absoluta necessidade. Depenados, os corpos eram alvos dos urubus. Não tardou para que os urubus passassem a ser alvos dos homens.

Toda energia passou a ser gasta na busca pelo prazer (rapidamente redescobrimos o prazer como a prioridade absoluta). A maioria de nós encontrava prazer em expurgar em violência a própria raiva. Matavam-se idosos, estupravam-se crianças, destruíam-se os monumentos do mundo já antigo. Muitos já o faziam sem objetivo, como que compelidos pelo viver daquela forma, a nova forma coletiva natural de se viver. Ninguém questionava. Questionar seria subversão, e sempre fora preciso se atentar à ordem estabelecida — inclusive no caos.

Naquele mundo, não havia espaço para questões. Desde sempre.

5.
No 80º dia sem água, percebi o rumor sobre um lugar em que ainda haveria água, uma nascente ainda acessível, longe do mar. As versões do boato foram as mais variadas, mas em sua maioria elas se imiscuíam de aspectos religiosos sincréticos.

A violência diminuiu por alguns dias, mas logo voltou mais intensa. Nesse período, hordas passaram a peregrinar aleatoriamente em busca dessa salvação, sempre sob a direção de um executivo do alto escalão do mercado corporativo, o tipo nascido ou cunhado para liderar.

Positivamente, poucos grupos caminharam juntos por mais de três dias sem se exterminar por completo. Normalmente, na primeira demonstração de perplexidade, o líder era logo esquartejado — exceto os realmente muito bons, que estes eram capazes de fazer seu grupo se destruir antes de voltar a atenção para o seu líder.

No fim, contudo, o líder acabava mesmo morrendo pela mão do último homem. Ou, se fosse dos que gostavam de academia, matava-o e tentava integrar outro grupo. Nesses casos, não raro o ex-executivo que liderava a outra horda percebia a ameaça e eliminava (pela mão de seus seguidores, naturalmente) o líder intruso antes mesmo de ele exercer qualquer influência sobre os liderados.

Matando e morrendo aos montes, não demorou para que os peregrinos desacreditassem o milagre e voltassem a se recolher fora de vista.

6.
Hoje é o 101º dia sem água. Neste instante, tentam arrombar a porta do meu apartamento. Já saí daqui e voltei algumas vezes desde que tudo começou, mas faz algum tempo que estou entrincheirado neste cubículo. Acredito que o cheiro os fará desmaiar ao entrar, mas não tenho certeza.

No início, aguardava ansioso a invasão, a alma saindo pela boca seca. Agora, já miro a porta com o coração mais calmo. As investidas contra a madeira grossa da entrada até me trazem algum conforto, ainda que eu não saiba explicar exatamente por quê. Sinto-me vivo, talvez, coisa rara nestes dias.

Nós humanos somos engraçados. Expostos a uma desgraça de forma gradativa, qualquer que seja ela, conseguimos suportá-la eternamente — mesmo que ela se agrave eternamente. Eu mesmo fui me acostumando com este cheiro cadavérico e, hoje, sobrevivo perfeitamente junto aos dois corpos que me infestam a sala de estar. Do cheiro dos ralos, por exemplo, eu até gosto. Mas esta pequena horda que bate à minha porta: se entrarem de uma vez só, sem hesitar, eles não vão suportar o peso do ar. Tenho certeza. Ao menos alguns, que seja, tenho certeza que ao menos alguns vão cambalear antes de me alcançar, sucumbindo a toda esta putrefação.

Vou ter de agir rápido.

7.
No 11º dia sem água, antecipei-me e assassinei discretamente as duas famílias com bebês do meu prédio. Não tenho nenhum bebê, mas saquei que era me antecipar ou ir para o saco. Dias depois, ao ver pela janela e pela tevê em que o mundo havia se tornado, senti-me como aquele executivo do alto escalão do Lehman Brothers na véspera de o banco pedir concordata e rascunhar a bancarrota do mundo.

Abriram as portas para mim; matei-os com inacreditável facilidade. Ataquei na baixa e bebi na alta, não é o que dizem? Saquei o que pude antes de o banco quebrar.

Entre o 14º e o 30º dia, foquei-me nos apartamentos com mulheres e crianças maiores. Além de ter sede, eu sentia a necessidade de algum prazer. Essas iniciativas possibilitaram-me constituir uma reserva (não só física, mas emocional, entenda-me bem) que foi estratégica para o que viria a seguir.

Entre o 30º e o 60º dia sem água, terminei de eliminar o restante dos meus vizinhos. Dezesseis apartamentos divididos em oito andares, os primeiros já ali no térreo. Positivamente, essa foi a empreitada de que mais me orgulho. Sempre me ressenti de, no mundo civilizado, não ter conseguido descobrir em mim algum talento que me colocasse para além do medíocre em qualquer atividade que eu executasse. Foi preciso o fim do mundo para eu me encontrar.

Desde que isso tudo começou, tive calma e inteligência suficientes para me manter sempre um passo à frente de todos, sempre antecipando alguma estratégia individual em oposição ao desespero coletivo. Eu sou o que poderíamos chamar de homem de sucesso do mundo apocalíptico. É na crise que estão as maiores oportunidades, não é o que dizem? Pois então. Agarrei a oportunidade com unhas e dentes. Sou um homem de sucesso do mundo contemporâneo. Sou um homem de sucesso.

Naquele dia, de madrugada, em completo silêncio, deixei uma garrafinha de água no meio do saguão de cada andar. De manhã cedo, pus-me à janela a comunicar a todos a minha iniciativa: disse ter feito uma boa reserva e que agora a dividia com os vizinhos em sinal de boa vontade, para que tentássemos manter a paz. Pedi que com isso não ameaçassem a minha vida. Demonstrei fragilidade.

Efetivamente, daquela empreitada restou-me apenas meia garrafa pequena de água limpa. Hoje, quando penso nisso, não consigo acreditar que arrisquei tanto. Ao mesmo tempo, fico orgulhoso de ter sido tão arrojado. Um homem de sucesso no mundo pós-apocalíptico precisa ser arrojado e saber se valer dos recursos que tem. Dinheiro faz dinheiro.

Quando gritei à janela, todos correram à porta para conferir se eu de fato havia feito a loucura de ceder-lhes água. Olharam por seus olhos mágicos e realmente viram: água; água limpa. E ali, a apenas seis metros de distância. Uma garrafinha no meio do saguão de cada andar.

Quase que simultaneamente, os trincos das portas se abriram. Eu quase pude ouvir. Em seguida vieram os passos apressados, o desespero de alcançar o vasilhame antes do vizinho de frente. Os gritos. Silêncios intercalados. Sons secos ecoando pelo vão do prédio. Tudo era seco. O maior prazer que obtive nestes cem dias foram aqueles sons secos entrando pela minha janela.

Sozinhos, os meus próprios vizinhos reduziram o contingente de 16 apartamentos a míseras sete pessoas. E o melhor: sete pessoas esgotadas fisicamente, algumas inclusive dispostas em outros apartamentos que não os seus, e sem coragem de retornar. Não foi difícil para que, nos dias seguintes, com calma, com estratégia, com racionalidade, do jeito que só faria um homem de sucesso no mundo pós-apocalíptico, eu eliminasse os que restaram. Dividir, conquistar e avançar. Dividir, conquistar e avançar. Dinheiro faz dinheiro. Água faz água. Para enfrentar o mercado, é preciso sangue frio.

Quando terminei minha empreitada, dispus os corpos no saguão do meu andar, ao mesmo tempo dificultando a passagem e deixando um recado: naquele prédio havia um homem de sucesso; sugestão, não provocar. Dois corpos, contudo, eu trouxe ainda vivos para dentro do meu apartamento: duas de minhas vizinhas. Depois de um tempo, contudo, elas se tornaram de fato corpos e começaram a feder. Infelizmente, nessa ocasião eu já não pude mais abrir a porta para me desfazer deles: o prédio já havia sido novamente invadido (o aviso não funcionou como eu previra). Não tardou para que esta horda chegasse à minha porta — a única trancada por dentro.

Para os desgraçados, aquela porta trancada fora como o laço brilhante que faz a criança se apaixonar pelo presente escondido num embrulho colorido.

8.
Não posso dizer que eu não fui um vencedor. Sou sim um homem de sucesso do mundo pós-apocalíptico. Vivi os meus cem dias da melhor forma que pude; melhor e mais tempo do que a maioria dos outros humanos. Vali-me dos mantimentos e da água de dezesseis casas durante todo esse tempo, o que me manteve forte e saudável para o que vier pela frente, agora. E desfrutei de prazeres que mantiveram a minha mente centrada: estou pronto para o combate.

Mas agora estão arrombando a minha porta. Não sei quantos são, tampouco se estão fortes e saudáveis como eu. Imagino que não, mas não tenho como saber. A porta ao menos ainda não derrubaram. Já eu estou forte. Ainda tenho gás, fiz comida, tenho me alimentado. Dou conta de três ou quatro, estou certo disso. Mais, não sei: depende do estado deles.

Estou certo de que não há mulheres ou crianças entre eles, o que não me motiva a enfrentá-los. Mas não tenho muita escolha: a única saída do meu apartamento é mesmo a porta da frente.

9.
Já vejo uma pequena fresta entre a madeira, cavada a machado. Só me faltava essa: um machado.

10.
Da minha parte, eu tenho uma arma que peguei do policial que matei. Não tinha contado? Sim, tenho uma arma. Por essa você não podia esperar.

No meu prédio havia um policial com um bebê. No 11º dia, ele fez a besteira de abrir a porta para mim, que pelo olho mágico oferecia uma garrafa de água para ele dar ao filho. Ele hesitou, mas no fim acreditou. É incrível como as pessoas precisam acreditar.

Quando entrei no apartamento, o policial não teve outra alternativa que não proteger o filho, que estava no colo, deixando a lombar à mostra. O homem sempre fica vulnerável quando precisa cuidar de outro. Por isso um homem de sucesso pensa primeiro em si.

Mirei a lombar, visei a lombar, mas não sei por que acertei-o fortemente na cabeça. Com o martelo, uma única vez. No início eu usava martelo. Caiu estrebuchado, acho que segue tendo espasmos até agora. Na hora eu me assustei — foi a minha primeira morte; hoje eu acho engraçado quando lembro dos pés dele tremendo entre o sangue.

Os recursos do seu apartamento foram essenciais para que eu resistisse até agora.

Mas não me pergunte do bebê. Não quero falar sobre isso.

11.
Se contei que tenho esta arma, também cabe contar que não sei usá-la. Pois é, nem tudo é perfeito. Bem, eu até imagino como seja, mas não quis gastar bala à toa, testando.

12.
Aponto a arma para o buraco na porta. Penso em derrubar um e com isso espantar os demais. Afinal, quantas armas mais eu poderia ter? Ninguém seria tão idiota a ponto de querer conferir. Boto o dedo no gatilho. Aperto. Não funciona.

A trava: todos os filmes falam na maldita trava. Ela existe mesmo.

Destravo o revólver. Repito o procedimento. Dedo no gatilho, e aperto. Um estouro: um tranco no braço, fumaça no cano, o cheiro de pólvora, o meu susto. Então é assim que se atira? Ouço um grito do outro lado. Acertei alguém.

Descarrego a arma pela fresta e, pelo que parece, fiz um estrago. Ouço choro e gemidos, como se ardêssemos todos no inferno. Na verdade, é isso mesmo: eles ardem todos no fogo do inferno. Já eu, eu não, eu ainda tenho água. Inspirado, coloco uma dose em um copo, coisa que há tempos não faço. Tomo um drinque no inferno.

Ouço-os conversando, recuados. Não estão mortos. Não todos. Não são poucos, afinal. Bem, ao menos ganhei algum tempo. E melhorei minhas chances.

Sei que tenho mais balas. Peguei tudo o que havia no apartamento do policial. Só não lembro onde coloquei. Procuro. Com custo, acho-as junto aos corpos na sala de estar.

Recarrego o revólver. Tento enxergar pela fresta da porta: uma forte machadada passa a centímetros da minha cara. Desgraçado! Descarrego novamente a arma, mas agora não sei se acertei alguém.

Cai a noite, eles parecem dormir. Ou foram embora. Ou morreram de sede. Meu apartamento é de fato uma gaiola, uma gaiola minúscula no oitavo andar do prédio, com grossas grades nas janelas. Para entrar, só mesmo pela porta.

Isolo a porta com alguns móveis; isolo a sala, que felizmente também é fechada à porta. Recolho-me do corredor para dentro: espaço de sobra para mim e minha água. E ainda me livro daqueles corpos. Que apodreçam na sala de estar. Nunca mais vou precisar passar por ali.

Se forem espertos, irão embora. Se estiverem desesperados, insistirão. Tenho mais seis balas, seis balas e um martelo. Meu martelo faz um estrago.

13.
102º dia sem água.

Do lado de fora de minha metade de apartamento, tudo é silêncio. Não saberei se isso é bom ou se é ruim, mas darei risadas por ter os meus livros, por ter comida e por ainda ter água. Tenho comida e água! Ah, a vida é uma festa. Sou um homem de sucesso do mundo pós-apocalíptico. E por quanto tempo aguentarão esperar? Por quanto tempo poderão resistir? Vencerei. Estou certo de que vencerei.

Se chegarmos ao 105º dia, logo o meu martelo mesmo, sozinho, resolve mais este problema. De toda forma, o que nos importa a todos é o agora.

Agora eu tenho água. Agora eu vou beber toda a minha água.

 

Ewerton Martins Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1981. Além de escritor, é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais e jornalista da própria UFMG. Estreou na ficção em 2014 com A grande marcha.

Rascunho