Vaivém como método: por uma história cultural não hegemônica

O enfrentamento da alteridade é inevitável em qualquer época
Ilustração: Jorge Luis Borges por Osvalter
01/06/2017

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Em Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, Fernando Ortiz propôs o conceito de transculturación. Em vez de supor a simples imposição de valores culturais estrangeiros, Ortiz tentou compreender o fenômeno das trocas culturais, que supõe acima de tudo um critério interessado na seleção dos elementos que serão transformados em determinado contexto. Trata-se de processo ativo de reordenação da própria cultura no (incontornável) enfrentamento com o alheio.

Bronislaw Malinovski sublinhou a fecundidade do conceito:

Não é preciso esforçar-se para compreender que mediante o uso do vocábulo aculturação introduzimos implicitamente um conjunto de conceitos morais, normativos e valoradores, os quais viciam desde a raiz a compreensão real do fenômeno. […] Toda mudança de cultura, ou, como diremos de agora em diante, toda TRANSCULTURAÇÃO é um processo em que sempre se dá algo em troca daquilo que se recebe; é um “toma lá, dá cá”, como dizem.[1]

O enfrentamento da alteridade é inevitável em qualquer época, já que nenhuma cultura é uma ilha ou uma mônada. Porém, no caso das culturas latino-americanas, a partir da invasão europeia, tal circunstância definiu o alfa e o ômega da invenção cultural. Por isso, nada mais preciso do que elaborar uma teoria que esclareça os contornos do processo de assimilação contínua do Outro.

Aí reside o sentido da investigação de Ortiz: o contrapunteo de duas formas opostas de lidar com a terra e os homens que, não apesar de suas diferenças, mas precisamente por causa delas, conformam uma nova cultura. São muito sugestivos os contrastes esboçados na prosa do cubano (que tanto evoca o texto de Gilberto Freyre):[2]

[…] tabaco e açúcar conduzem-se quase sempre de modo antitético. […]

O açúcar é ela; o tabaco é ele… A cana foi obra dos deuses, o tabaco dos demônios, ela é filha de Apolo, ele é o aborto de Proserpina… […]

Centripetismo e centrifugação. Cubanidade e estrangeirismo. Soberania e colonialismo. Coroa altiva e paletó humilde. (p. 139-40)

Descobrir modos de criar mundos com base na oposição de elementos é o princípio da transculturação, que oferece uma chave inovadora no entendimento da oscilação entre dois polos: o próprio e o alheio, ou, nos termos de Ortiz, “cubanidade e estrangeirismo”.

Elsa Cecilia Frost chegou a conclusão próxima em Las categorías de la cultura mexicana. A pensadora empregou o vocabulário de Fernando Ortiz, além de acrescentar à abordagem a ideia-força de “cultura de síntese” como forma de compreensão do processo histórico mexicano.

Leiamos sua reflexão acerca dos vínculos entre o europeu e o autóctone, na qual esclarece o sentido que atribui à noção de culturas de síntese:

O novo ambiente forçou o colonizador a modificar sua cultura e, quando isso não era suficiente, a adotar certas modalidades da cultura aborígene, traduzindo-as, por assim dizer, para o castelhano.

Portanto, este conceito, o mesmo que o anterior, considera que a transculturação foi possível.[3]

Cecilia Frost opôs à ideia simples de uma cultura fusionada, que “supõe um fato consumado”, a noção muito mais interessante de uma “cultura de síntese”, isto é, “que se inicia no século 16 e que ainda está em marcha” (Ibidem, grifo meu). Como o princípio da dialética sem síntese, tal como proposta por Theodor Adorno, a “cultura de síntese” é, sobretudo, um processo em curso.

Por uma nova história cultural?
Pelo contrário, o modelo dominante de história cultural, típico projeto de extração romântica, implica o desvelamento contínuo do ser em busca de re-flexão: esse retorno utópico à plenitude perdida. Dessa perspectiva, o modelo da história cultural traz marcas inegavelmente hegelianas, apresentando-se como o reencontro do ser com sua essência. A história cultural seria o momento do reencontro re-fletido do ser com seus atributos intrínsecos.

Não é difícil perceber que esse também é o modelo dominante de certa história cultural latino-americana. Segundo tal marco narrativo, teria ocorrido uma desapropriação violenta e traumática — a invasão europeia — e o processo cultural representaria o esforço de valorização do próprio, isto é, do elemento indígena anterior à invasão europeia.

A perspectiva de Cecilia Frost permite superar esse beco sem saída:

O México era um mosaico de culturas que, mesmo aparentadas, mantinham-se separadas por ódios étnicos inconciliáveis. Foi precisamente essa desunião que permitiu que um punhado de espanhóis tomasse o controle do território, e foi a Colônia que conseguiu fazer de todas as tribos um só povo. […] A cultura mexicana, nascida na Colônia, seria por conseguinte o resultado da síntese dessa essência indígena com as formas culturais espanholas. (p. 78-79)

Entre a intenção de retomar o contato com a essência e o gesto da escrita, abre-se uma fissura que só pode ampliar-se.

Tal perspectiva favorece a releitura de um texto clássico de Jorge Luis Borges, Funes, el memorioso.

Rememoro brevemente o enredo.

O conto narra os prodígios e as desventuras de Irineo Fuentes, um jovem de “cara de índio taciturna e singularmente remota”.[4] Incertas suas origens:

[…] era filho de uma passadeira do povoado, María Clemente Funes, e que alguns diziam que o pai dele era um médico da charqueada, um inglês O’Connor, outros um domador ou rastreador do distrito de Salto. (p. 101)

Seu sobrenome era, por assim dizer, órfão de pai; no fundo, o mestiço Funes viveu sempre à margem. No início da narrativa, ele possui uma relação de absoluta sincronia com a atualidade: quando lhe perguntam, “Que horas são, Irineo?”, a precisão era sua marca-d’água: “Faltam quatro minutos para as oito” (p. 100). Naturalmente, o rigor dispensava o ocioso artifício de relógios. Funes é o próprio presente personificado. Terêncio do aqui e agora, o coetâneo nunca lhe é alheio. Contudo, após um acidente que o deixou paralisado, seu trato com Cronos conheceu uma inversão completa: Irineo abraçou com volúpia o passado, aprimorando uma memória sem falhas. Se algum incauto perguntasse como havia sido seu dia, precisaria dispor de 24 horas para escutar a laboriosa resposta.

Borges cifrou no extraordinário personagem os dois tipos (pouco) ideais do intelectual não hegemônico. De um lado, estar atualizado em relação às últimas notícias do Outro, no afã de brilhar com a chancela dos centros de poder. De outro, elaborar uma Biblioteca de Babel mental — como a pintura para Leonardo da Vinci —, reunindo todas as páginas lidas, paisagens contempladas e palavras ouvidas. Opostos, os gestos se irmanam no mesmo impasse:

Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. […]

Irineo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar. (p. 108)

Melancolia não hegemônica, o excesso de presente ou o acúmulo de passado impedem que o pensamento se abra para o futuro, afirmando a própria voz no ato de emulação.

No entanto, por que não imaginar a potência, quase nunca atualizada na circunstância não hegemônica, de um Funes virado pelo avesso, aprendendo a olvidar com a espontaneidade de uma respiración artificial?

NOTAS

[1] Bronislaw Malinovski, “Introducción”. In: “Fernando Ortiz: Contrapunteo y Transculturación”. In: Fernando Ortiz, Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar. Org. Enrico Mario Santí. Madrid, Cátedra, 2002, p. 125. Nas próximas citações, menciono apenas o número da página.

[2] Gilberto Freyre, aliás, dedicou um livro a Fernando Ortiz (e também a J. Natalício González, Concha Romero James e William Berrien; nessa ordem), Problemas Brasileiros de Antropologia (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1942).

[3] Elsa Cecilia Frost, Las Categorías de la Cultura Mexicana, op. cit., p. 179. Nas próximas citações, menciono apenas o número da página.

[4] Jorge Luis Borges, “Funes, o Memorioso”. In: Ficções (1944). Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 98. Nas próximas citações, menciono apenas o número da página.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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