Maupassant: o domínio do mínimo

Maupassant é o típico autor que deleita os leitores e assombra os escritores.
Ilustração: Valdir Heitkoeter
01/06/2017

Aplicar às manifestações culturais os conceitos evolucionistas, conforme estabelecidos por Darwin, já deixou de fazer sentido há muito tempo. Hoje, excetuando os ingênuos partidários do criacionismo, todas as pessoas de bom senso sabem que os organismos vivos evoluem, cabendo à natureza selecionar as espécies que devem permanecer e descartar as que se mostram inadequadas.

Mas em relação aos objetos artísticos não é sensato afirmar o mesmo: apesar de pouco praticadas hoje em dia, a epopeia e a sinfonia, por exemplo, não podem ser consideradas gêneros extintos.

A despeito disso, na história da arte e da literatura os gêneros artísticos e literários parecem se comportar como os seres vivos na natureza. Dando de ombros ao nosso bom senso, as formas parecem caminhar para certa ideia de perfeição, como se quisessem cristalizar-se, como se as suas partes procurassem encontrar a perfeita harmonia.

A música para piano, em minha opinião, alcançou o equilíbrio sem retoques nas mãos dos românticos, principalmente nas de Beethoven, Schubert e Chopin. No século 19 essa música, aperfeiçoada ao máximo por esses três, atingiu o limite de excelência: quem seria capaz de aperfeiçoar as sonatas de Beethoven, os Improvisos de Schubert ou os Estudos de Chopin?

O mesmo aconteceu com a pintura de paisagens nas mãos de Constable. Já o autorretrato cristalizou-se com Rembrandt. O drama, com Shakespeare. O romance, com Flaubert. O conto, certamente com Maupassant.

Afinal de contas, o que é o conto? Não, não me venham com o chiste do Mário de Andrade: “Sempre será conto o que seu autor batizou de conto”. A precisa origem dessa forma narrativa é desconhecida e remonta à tradição oral, aos primórdios da própria arte literária.

Segundo os estudiosos, muitos exemplos bem acabados de conto podem ser localizados milhares de anos antes do nascimento de Cristo, como o episódio entre Afrodite e Mercúrio, na Odisseia, com A matrona de Éfeso, de Petrônio, e O sonho, de Apuleio, os três pertencentes à Antiguidade Clássica.

No tempo de Boccaccio o conto, a fábula, a parábola e a novela, por pertencerem à mesma família narrativa, muitas vezes coincidiam. Eram histórias breves que se opunham ao romance medieval, mais extenso. Tanto isso é verdade que as novelas de Cervantes e Lope de Vega parecem bons exemplos de contos para o leitor de hoje.

É no século 19, época de Maupassant, Poe e Gogol, que o conto se distancia da novela e do romance, adquirindo estrutura própria. O século 19 é não só a época da literatura realista como também do conto clássico. É a época dos gigantes desse gênero breve, sendo Maupassant o maior deles, nas mãos de quem o conto encontrou sua melhor forma.

Visto do ângulo dramático, o conto clássico é uma narrativa unívoca, linear, com começo, meio e fim, arrematada sempre por um desfecho inesperado e surpreendente (palavras de Nadia Battella Gotlib). Sua estrutura abriga apenas uma ação, apenas um conflito: a ação e o conflito mais importantes na vida de determinadas personagens (palavras de Massaud Moisés). Sendo assim, ao buscar o efeito máximo, o contista rejeita as digressões e as extrapolações, privilegiando a concentração e a economia de meios ficcionais (palavras dos especialistas, este paragrafão inteiro). A objetividade conduz a mão do autor, por esse motivo a dimensão do conto é reduzida. A preferência pela concisão e pela condensação dos efeitos comprime as molas narrativas, tornando o conto um artefato de poder concentrado. Outra característica importante do conto clássico é que ele termina justamente no clímax, na reviravolta, ao contrário do romance clássico, em que o clímax aparece muito antes do final. O tempo e o espaço físico da trama normalmente não variam muito, devido à própria dimensão do conto: o passado e o futuro do acontecimento narrado são irrelevantes. Caso seja necessário, o contista condensa o passado e o expõe ao leitor em poucas linhas. Devido a essas características — enredo superconcentrado, pequena extensão e pouca variação espacial e temporal — o número de personagens que sobe ao palco é pequeno. Também não há lugar para figuras muito complexas: a ênfase é colocada nas suas ações e não no seu caráter.

É claro que essas características do conto clássico, que constituem a estrutura básica que configura o gênero, seriam completamente subvertidas no século seguinte. Porém, relendo as histórias de Maupassant reunidas em Bola de sebo e outros contos, da editora Hedra, fica fácil perceber que tudo o que veio depois, com os mestres do modernismo — Kafka, Joyce e Cortázar, por exemplo —, apareceu como revolta raivosa contra a perfeição do conto clássico. Contra a perfeição da prosa de Maupassant.

Distantes no tempo e no espaço, separados por um abismo estético quase intransponível, entre mim e Maupassant há diversos assuntos mal resolvidos. Indo direto ao ponto: eu o invejo. E muito. Mais do que já invejei Kafka, Joyce e Cortázar, aos quais sempre me senti ligado pelos severos laços de sangue da arte pela arte.

Maupassant é o típico autor que deleita os leitores e assombra os escritores. A sua prosa é fácil sem ser fútil, é elegante sem ser afetada, é sedutora sem ser vulgar. Os seus contos fluem com naturalidade, pois não há nada no caminho — pedra ou sentença fora do lugar — que possa atrapalhar esse fluxo. Maupassant domina todos os artifícios da narrativa realista e sabe, como só os grandes autores de seu tempo (Balzac e Flaubert), envolver e hipnotizar o leitor, tirando-o de sua rotina, aconchegando-o, fazendo com que participe da trama que está sendo narrada.

Sobre o prazer que contos já célebres, como Bola de sebo e O Horla, provocam no leitor, não é preciso dizer nada. Sobre a inveja que esses e outros contos provocam nos escritores, principalmente nos escritores nossos contemporâneos, é preciso dizer tudo, pois poucos desses invejosos têm tido a coragem de revelar esse clandestino pecado capital.

Durante os dez anos em que produziu incessantemente, de 1880 a 1890, Maupassant escreveu trezentos contos e cinco romances, e foi aclamado pela público e pela crítica como um dos autores mais importantes da França. Esse retumbante sucesso, ocorrido principalmente entre os leitores comuns, pertencentes à burguesia vitoriosa, é o fenômeno que os prosadores de vanguarda, herméticos e difíceis, mais invejam quando pensam em Maupassant.

Por mais rabugento que seja, todo escritor, inclusive os adeptos mais fervorosos da arte pela arte — justamente os que não consideram Maupassant importante, mas apenas popular —, gostaria de ser aclamado assim em praça pública. O talento, quando vem de mãos dadas com a popularidade e o sucesso comercial, rasga as entranhas dos artistas mais intransigentes, para os quais a função primeira da arte é inquietar e sacudir, jamais entreter e afagar o público.

Aí está toda a força desse fantasma cativante e irresistível: à maneira de sua criação mais assustadora (o Horla, entidade invisível que ameaça e transtorna as pessoas que estão por perto), Maupassant continua assombrando a todos nós, autores do século 21.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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