Literatura sem açúcar, por favor

O guatemalteco Miguel Angel Astúrias encara um ditador; o uruguaio Mario Benedetti, os percalços do cotidiano
Mario Benedetti, autor de “Montevideanos”
01/06/2017

Numa dessas manhãs que começam com ar fresco de outono mas esquentam demasiado em São Paulo, enquanto já escorriam as primeiras gotas de suor, estupidamente tentando fazer tudo ao mesmo tempo, derramei café. Vinha do metrô, com mochila pesada e um livro na mão. Pus o copinho de plástico junto à garrafa térmica da empresa e atrapalhado apertei. Queimei a ponta dos dedos, respingou um pouco no livro. A gente solta um palavrão, como se doesse menos. Sensação de dia ruim, logo no começo. Os pingos de café estão na página 53 de O senhor presidente, obra do Nobel de Literatura Miguel Ángel Asturias. Nessa página 53, um mendigo com problemas mentais é socorrido a um hospital por um bom samaritano, que não imagina ser esse desmilinguido um procurado pela ditadura — a essa altura, a ditadura tampouco sabe que é ele o assassino de um coronel filho da puta. Despotismo e miséria humana. O café, peguei de novo, direito. Feito cedinho, já estava péssimo.

O outro livro desta resenha também li boa parte nas idas e vindas em ônibus e metrô, até caminhando na rua, como se fosse mais um desses caras que andam olhando um telefone celular e teclando. Foi irresistível. Na região sueca em que vivo isso é possível — no Brasilzão, pertinho no mapa e distante na prática, o aperto no transporte público não permite a distância necessária entre os olhos e o objeto de leitura. Aqui é mais Uruguai que Guatemala. E nas páginas de Montevideanos, de Mario Benedetti, até pude transpor com simpatia o cotidiano dos personagens e seu jeito enganosamente carinhoso de tratá-los aos seres das ruas paulistanas.

Esses dois livros tão diferentes são o pontapé inicial de uma coleção nova da Mundaréu, chamada Nosotros!, que pretende publicar obras importantes de autores latino-americanos. Asturias, da Guatemala, recebeu o Nobel em 1967. Benedetti, do Uruguai, ganhou poucos prêmios — um deles, pelo conjunto da obra, na Bulgária.

Prêmios são mesmo muito relativos.

Falsa lentidão
A maioria dos dezenove contos de Montevideanos durou uma ida ou volta para casa, o que dá ao dia certa sensação de completude — não só por se poder ler um conto inteiro mas pelo prazer do texto. Quando não basta a viagem, a ansiedade para se terminar também é gostosa. A linguagem tem uma falsa lentidão, flui quase sem curvas. Benedetti faz o milagre da ação em cenas muito particulares de seus personagens muito comuns — gente que divide o metrô comigo, e sou eu de alguma forma, em algum tempo. Isso se dá logo de cara, por exemplo no conto Orçamento, ambientado numa repartição pública, que bem podia ser um escritório de contabilidade ou afim, sob claustrofóbica burocracia; vidas entravadas por esperanças vãs. E essa impressão de agilidade sobrevive ao desfecho do conto, que é aberto, praticamente uma reticência — característica marcante do autor nessa obra.

Benedetti, poeta, tem a mania das frases precisas e surpreendentes. Há jeitos e jeitos de se dizer algo corriqueiro. No conto Não vacilou, dois exemplos: “O pai tinha procurado e encontrado seu enfarte”. Depois: “Quando ela terminou de morrer…”. A escolha dos verbos conta uma história inteira, dentro da que está sendo contada, quando o comum seria escrever que o pai teve um enfarte e a mãe morreu, provavelmente pondo fim a um arrastado sofrimento.

Posso dividir mais um trecho? Este é de As xícaras: “Ele tinha passado um braço sobre seus ombros e ela se sentia protegida, provavelmente feliz ou algo parecido”. Nesse conto, há um personagem “provavelmente” cego, a esposa dele e o irmão, que supostamente enxergam. Se disser que há uma pitada de Nelson Rodrigues no texto, acho que tudo se insinua o suficiente. Como dizer que um café recém-passado, servido em xícara de louça, pode até queimar os dedos, mas tende a não amargar a boca, ainda que sem açúcar.

Lirismo e tortura
Asturias tenta adoçar seu romance O senhor presidente, mas o lirismo não alivia muito. Esse lirismo aparece principalmente em descrições de sonhos dos personagens. Ainda assim é uma tijolada a cada capítulo. Há histórias sendo contadas no romance, mas o que marca mais é o ambiente. Um livro denúncia. A Guatemala, como todos os países da América Latina, foi massacrada por ditaduras. Escrito ao longo da década de 20, terminado no início dos anos 30, publicado somente em 1946, mostra as arbitrariedades do ditador de plantão, dono da vida e da morte dos cidadãos, caricaturado e, como as boas caricaturas, exagerando para mostrar a essência, a verdade. O país não é diretamente identificado pelo autor. Não precisa, a gente se reconhece nos livros de história, entre desmandos e torturas.

O mal-estar acompanha o leitor de cabo a rabo. O desamparo do povo em geral é representado principalmente por quem sobrevive sem casa, nas ruas, carregando apelidos degradantes como a própria situação, sofrendo ferimentos e horrores, concentrados em frente a uma igreja que aos cariocas soa a Candelária, ao paulistanos a Sé, e em cada grande cidade pelo menos uma referência assim (leio na internet que há mendigos nas noites até da Praça São Pedro). O uso do latim, dizeres de orações, serpenteiam o romance, entre alfinetadas mais diretas contra a Igreja Católica, que no século 20 era ainda mais dominante nessa região do planeta.

Os inimigos do bem-estar do povo eram mais evidentes naquela época. Os mendigos seguem sobrevivendo a horrores, ganhar a vida trabalhando nos toma cada vez mais tempo e energia. O papa nunca foi tão pop quanto hoje. E os ditadores dissimulados da atualidade, como Asturias os caricaturaria?

Com a travessa na mão, a empregada correu para alcançar o ajudante e lhe perguntou por que não havia aguentado as duzentas chicotadas.

Como assim por quê? Porque morreu!

E ainda com a travessa na mão, voltou para a sala.

Senhor disse quase chorando ao Presidente, que comia tranquilo , ele disse que não aguentou porque morreu!

E daí? Traga o próximo prato!.

Toda literatura pode ser encarada como uma espécie de desabafo, denúncia? Resistência, sem dúvida.

Atuais
Montevideanos tem contos escritos/publicados ao longo da década de 50. Seus dramas não são tão diferentes dos contemporâneos: mudam as vestes, os equipamentos, menos as aflições. Às vezes o tempo não importa nada. Como em Aquela boca, em que um menino louco para ver os trapezistas do circo choca-se frontalmente e em íntima violência contra o sorriso murcho de um palhaço.

A questão da burocracia, do grande tempo de trabalho dedicado ao que é repetitivo e pouco produtivo, aparece bastante ao longo dos contos de Benedetti. Tem amor e interesses. Tem o tempo que passa, devastador. Em comparação, Montevideanos é mais próximo de nós em 2017 do que O senhor presidente. Mas não é só de atualidade e identificação que se perpetua a literatura. Pego emprestado o conhecimento e a precisão da professora Leyla Perrone-Moisés, na conclusão de Mutações da literatura no século XXI (página 254):

As obras literárias citam o passado e profetizam o futuro, em doses não quantificáveis. Além disso, a obra literária só se concretiza na leitura e, como esta presentifica a obra, ela é sempre contemporânea do leitor. O que é contemporâneo é o modo de ler as obras do passado, e a persistente atualidade das obras antigas é uma medida de seu valor.

São livros diferentes e importantes. O gosto pouco importa na análise, talvez o que determine a maior identificação com um ou outro leitor seja em boa parte o momento de cada um. A identificação com as histórias e personagens de Montevideanos é mais fácil. Em O senhor presidente, a demência que muitos apresentam, a situação de viver na rua (que é o não morar, por isso não uso o termo esquisito “morador de rua”), ou mesmo os cruéis torturadores tendem a afastar o leitor da identificação. Em contrapartida oferecem a oportunidade da aproximação com o diferente, o bem diferente. E quantos escritores mais tiveram coragem e competência para isso?

A resenha, esse risco de cometer burrice ou injustiça (ou os dois), termina pedindo café fresco. Os livros me observam, protegidos de respingos. Eu não. Mas prefiro sem açúcar. E você?

O senhor presidente
Miguel Ángel Astúrias
Trad.: Luis Reyes Gil
Mundaréu
359 págs.
Montevideanos
Mario Benedetti
Trad.: Ercílio e Nilce Tranjan
Mundaréu
167 págs.
Miguel Ángel Astúrias
É o ganhador do Nobel de Literatura de 1967. Nasceu na Guatemala, em 1899 (morreu em 1974). Autor também de Leyendas de Guatemala e Hombres de maíz.
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

Rascunho