A força da solidão

Em "Muito além do corpo", Luzilá Gonçalves Ferreira oferece uma literatura de grande subjetividade e sofisticação
Luzilá Gonçalves Ferreira, autora de “Muito além do corpo”
01/06/2017

Vivemos tempos onde a luta por respeito tem se tornado mais uma das banalidades de nosso dia a dia. Seres humanos vivendo nas ruas também são exemplos de desrespeito. Poderia elencar inúmeros, sem esquecer do desrespeito político. Bem, este talvez ainda precise ser inventado. Falemos de outras necessidades de respeito. Gênero, por exemplo. E não vou me estender, resumirei minha atuação, pelo menos neste espaço, ao gênero feminino. Principalmente porque aqui abordarei uma obra literária, a temática predominante de uma autora. Luzilá Gonçalves Ferreira estuda e representa a temática a partir do século 19. Procure, atento leitor, garanto que não se arrependerá, Humana, demasiado humana, ensaio de Luzilá sobre Lou Salomé. Você, feito a maioria dos leitores, dirá não conhecer. Não se recrimine, a maioria das editoras pouco se importa com a qualidade, mais vele alimentar os submitos feito Elena Ferrante. O importante é vender. Melhor dizendo, o importante é você comprar. Feita a raivosa, porém apropriada digressão, voltemos à obra de Luzilá: como valorizar este ou aquele tema, este ou aquele gênero? Simples. Muito simples. Basta atentar a um detalhe: a liberdade. E existe algo que combina muito bem com liberdade, o amor.

É justamente essa combinação, amor e liberdade, que o leitor encontra nas páginas de Voltar a Palermo, outra obra de Luzilá, começo dos anos 2000. Passados vinte anos, uma mulher parte em busca de um amor que o tempo e a distância não conseguiram esgotar/resolver.

A jornada da mulher é a metáfora da América massacrada por ditaduras. Maria enfrenta suas lembranças, vence as surpresas, carrega suas dores, até encontrar o amor, o amor que sobreviveu ao tempo e à distância. Mas não pense que Voltar a Palermo seja apenas isso. Surpresas e reflexões recheiam essa obra incomum.

O amor no centro
Muito além do corpo, publicado originalmente em 1987, apresenta também o amor como tema central. Mas não é o mesmo amor de Voltar a Palermo. Talvez se trate do mesmo amor, quem sabe? A mesma época, onde o cenário tenha mudado, onde a intimidade, a individualidade e o individualismo encerrem as expectativas e as ações. O amor exige prioridades àquele/àquela que o merece.

A narrativa é um exemplo de monólogo interior, ao mesmo tempo leva o leitor ao universo das cartas, uma carta ao ser amado, uma declaração de amor, uma confissão. Uma escrita sofisticadíssima, privilegiado leitor.

Em Voltar a Palermo, Maria viaja para encontrar Nino, vinte anos passados. Na expectativa de encontrar o mesmo Nino? Muito além do corpo, menos ação, mais expectativas, mais esperanças. É correto esperar do amor algo além do próprio amor? Correto ou não, pouco importa. O certo é que os protagonistas sempre creditam ao amor algo muito mais difícil, a felicidade. Mas o que é felicidade?

Sou feliz sem ti como sou feliz em ti. Se por qualquer razão desaparecesses de minha vida, continuaria feliz. És felicidade a mais, beleza a mais.

Muito além do corpo tem aspecto de diário, de confissão, de carta de amor, de autobiografia, e ficção, a grande ficção.

Em A arte do romance, Milan Kundera diz que o romance se esforça em revelar um aspecto desconhecido da existência humana, uma possibilidade do ser que se ignorava até então. Sem dúvida é isso e mais, muito mais: o imaginário ocupa um vasto espaço na literatura, não podemos desprezá-lo, a imbricação dos gêneros literários permite imensas áreas de expressão. Sobre o poder do imaginário e a relação entre os gêneros, Carlos Nejar escreve em História da literatura brasileira:

O miraculoso das palavras não procura tribos, são as tribos que procuram as palavras. E que não se esqueça de que a ruptura dos gêneros já se estabeleceu com Oswald de Andrade em Memórias sentimentais de João Miramar e Mário de Andrade em Macunaíma. Todavia, “a literatura é o sonho desperto das civilizações” lembrou Antonio Candido a ponto de “não haver equilíbrio Social sem literatura”. Vamos além, a literatura não é só o despertar dos mágicos, é o despertar, aos poucos, também, do que continuará sonhando. Inexistindo equilíbrio humano sem literatura, porque lida com a imaginação. O que podem os homens sem ela? O que podem, sem essa fala dos historiadores de um imaginário sem fronteiras, estabelecido no coração do homem?

Tomam-se como pontos de extrema relevância a imaginação e o contato entre os gêneros, ocasionando a consequente derrubada de fronteiras. Embora causador de polêmicas e questionamentos infindáveis oriundos da amálgama de gêneros que encerra, vale lembrar Mário de Andrade, em Cartas a um jovem escritor: “Todos os gêneros sempre e fatalmente se entrosaram, não há limites entre eles. O que importa é a validade do assunto na sua forma própria”.

Voltemos ao tema principal: o amor. E na presença do amor, o aroma indesejável da frustração. Caso você ainda não tenha percebido, ingênuo leitor, essa dupla é inseparável. Mais dia menos dia se fará notar. Sem aviso.

Eles tinham combinado que passariam um feriado juntos, toca o telefone, ela pressente que ele não virá. E a suspeita se confirma. Mas por que não virá? A falta de resposta faz parte da frustração. O cinema é a alternativa, a saída, a entrada no mundo ficcional. No espaço de pouca luz, a frustração se transforma em expectativa/possibilidade, materializa-se na figura do outro, aparentemente o único além dela, espectador. E o relacionamento tem início, não livre de problemas, melhor dizendo, carregando um insolucionável problema. E a dor ganha espaço… Até o dia do retorno do amado, aquele do telefonema.

Parece simples, mas não é. Luzilá não complica, mas exige do leitor. E exige bastante, pois oferece uma literatura de grande subjetividade e sofisticação.

Embora todos esses atrativos citados, o personagem mais marcante é a solidão. Solidão que, no cenário de incertezas, desenha novas realidades: a solidão. A solidão é como testemunho histórico e social.

Muito além do corpo é o testemunho da mais alta literatura brasileira. Sutil, imprevisível.

Lembra, paciente leitor, que falei em gênero no início deste texto? Feminino porque a autora se dedica à pesquisa da história das mulheres no século 19 e pelo fato de as mulheres serem protagonistas de sua ficção. Por isso apenas, porque o que elas sentem, eu sinto e espero que você também sinta.

Muito além do corpo
Luzilá Gonçalves Ferreira
Cepe
115 págs.
Luzilá Gonçalves Ferreira
É professora na Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora de história das mulheres no século 19, membro da União Brasileira de Escritores, Seção Pernambuco, doutora em Literatura pela Universidade Paris VII.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho