Uma guerra interior

Entrevista com Rafael Cardoso, autor de "O remanescente", romance que entrelaça memória familiar e os horrores do Holocausto
Rafael Cardoso, autor de “O remanescente”
30/05/2017

Ao descobrir a verdade sobre seus antepassados, o historiador da Arte e escritor Rafael Cardoso mergulhou em uma guerra interior, na qual precisou buscar a fundo a verdade sobre sua família e, consequentemente, sobre si mesmo. Em entrevista exclusiva ao Rascunho, concedida por e-mail, Cardoso conta sobre o processo de criação de O remanescente, livro que retrata a ascensão do nazismo e fuga de seus bisavós da Alemanha.

• Wittgenstein dizia que tudo o que se pode imaginar, pode existir no mundo real. No prelúdio, você, no entanto, alerta o leitor que se trata de um livro de ficção com base na história de sua família. Você esteve preocupado em materializar no romance os fatos reais de seus antepassados ou se deixou, desde o início, guiar-se pela criação livre?
Não sei se existe criação livre, no plano filosófico ao qual a pergunta faz referência. Wittgenstein também se preocupava com os ardis da linguagem, com a quase impossibilidade de se escapar dos circuitos estabelecidos previamente pelas formas linguísticas e convenções idiomáticas. Daí, a importância de subverter premissas e lançar incertezas. O prelúdio do livro funciona um pouco nesse sentido, de firmar certezas que depois serão desfeitas pela leitura. Ele expõe, de cara, o problema da relação entre fato e ficção. Afirma, para colocar em dúvida. Um pouco à moda de Sebald, que é uma referência incontornável ao abordar a temática de refugiados e Segunda Guerra, família e perda, imaginação e memória. Tive, sim, a preocupação de escrever um livro fiel à história dos meus antepassados, mas não de me ater aos chamados “fatos reais”. Quem tem experiência de pesquisa histórica sabe que os fatos não são tão unívocos assim. Uma única fonte pode conter dados conflitantes. Um número maior de fontes vai necessariamente abarcar uma multiplicidade de leituras possíveis. O historiador pode manipular a narrativa pela simples omissão ou ênfase. A escrita histórica é menos distinta da escrita literária do que se imagina.

• Levando em consideração ainda a noção de realidade e invenção, qual a importância da realidade na criação da sua obra ficcional?
A importância da realidade — dos fatos históricos, no caso — foi de servir como rédea para a escrita ficcional. Desde o começo, me propus a escrever um livro que pudesse ser lido por um especialista sem encontrar deslizes ou erros históricos. Tudo que acontece na narrativa é plausível, pelo menos, quando não “baseado em fatos reais”. Meu editor alemão não acreditou que eu pudesse ter realizado uma pesquisa tão aprofundada com relação à parte alemã da história. Chegou a dar o manuscrito para um historiador, que leu à procura de falhas e não achou nada. Fiquei feliz com isso. O grande desafio do livro foi de subordinar esse apuro histórico todo a uma estrutura de romance. A narrativa ficcional pede uma coerência e uma unidade que muitas vezes faltam à vida. Tive que resistir à tentação de arrolar todos os dados disponíveis, senão ficaria maçante. Queria que a verdade dos personagens se sobrepusesse à veracidade factual. Não é simples. Foi um pouco como jogar dois jogos distintos, com regras diferentes, ao mesmo tempo. Sinuca e pingue-pongue, na mesma mesa.

• Atualmente você vive na Alemanha pesquisando a respeito da história de sua família. Como foi o seu processo de pesquisa de O remanescente?
Foi um processo longo e extremamente complexo. Está sendo, aliás. Quando me perguntam quanto tempo levei para escrever o livro, às vezes brinco que foi a vida toda. De fato, a história de como a história chegou até mim abarca três décadas, conforme revelo nos três interlúdios que separam as partes do livro. O livro só começou a tomar corpo mesmo depois que vim para Berlim, em 2012. Não somente pela questão do acesso aos arquivos, mas também por motivos mais profundos. A experiência de conhecer os lugares que os personagens habitaram foi determinante, assim como está sendo minha luta diária para aprender a falar alemão. Esse deslocamento linguístico contribuiu para compreender melhor a natureza do exílio. Hoje, vejo como é duro o esforço para se reinventar em outro idioma e outra cultura.

• O remanescente apresenta ao leitor um grande apuro no resgate histórico, além de ser o primeiro de uma série. Quais são seus planos para a sequência? O que é possível adiantar?
O plano é fazer um segundo volume, mas não uma série. O remanescente termina em 1945, pouco antes do final da Guerra. Pretendo continuar a história até 1969, quando meu pai deixou o Brasil para emigrar para os Estados Unidos. Meu pai chegou ao Brasil com dez anos de idade, cresceu e se formou no Paraná, casou com uma carioca de família mineira, teve dois filhos brasileiros. No auge da ditadura, resolveu partir e começar tudo de novo numa terra desconhecida. Tenho por mim que, em algum nível, ele quis completar a jornada iniciada pelo avô dele. Meus bisavós pretendiam chegar aos Estados Unidos, mas acabaram ficando pelo Brasil. Difícil imaginar o que motiva um filho e neto de refugiados a submeter seus próprios filhos a essa experiência de ser imigrante. O exílio gera exílio. É esse o ponto que me interessa. O segundo volume acompanha os personagens do primeiro, mantendo a mesma tática de contrapor a vida pessoal deles ao pano de fundo histórico maior. Só que deve mergulhar mais fundo nessa questão da mudança de identidade, já que meus avós e meu pai acabaram abrindo mão do passado europeu e se integrando à vida no Brasil.

• Algo que fica muito claro na sua narrativa é a questão da identidade: ao usar passaportes falsos, seus antepassados se angustiavam por perder uma parte importante de si. Seu pai, apesar de filho de alemães, sempre se viu como francês e brasileiro. Você cresceu acreditando em uma história. Como a descoberta da real identidade da sua família mexeu com a certeza que você tinha sobre si mesmo?
É uma boa pergunta, talvez a mais difícil de todas. O que acontece quando são retirados os alicerces de quem a gente pensa que é? Crescemos em determinado ambiente, ouvindo que somos isso e não aquilo, que o normal é ser de um jeito e que os outros são diferentes de nós. Subitamente, por algum acidente do destino, essas certezas são postas em questão. Imagino que seja assim que se sintam as pessoas que descobrem, de repente, que não são filhos biológicos dos pais. Esses abalos de identidade me fascinam. A primeira reação é de medo, de rejeição. Entrei em pânico quando descobri, aos dezesseis anos, que não era quem eu pensava. Precisei de uma década ou mais antes de começar a processar essa revelação. O melhor termo que já encontrei para descrever a sensação é do Vilém Flusser, que chamava isso de Bodenlosigkeit — a condição de ficar sem chão. Como refugiado, ele viveu radicalmente “sem chão”, mas ele achava que todos somos Bodenlos no mundo de hoje, em maior ou menor grau. Isso tem um lado positivo. Quando alguém se vê lançado para fora do contexto de onde veio — longe da tribo, por assim dizer — é obrigado a descobrir quem é realmente, como indivíduo. Perder o medo da alteridade que existe dentro de nós torna possível aceitar a diferença dos outros.

 

Tive, sim, a preocupação de escrever um livro fiel à história dos meus antepassados, mas não de me ater aos chamados “fatos reais”. Quem tem experiência de pesquisa histórica sabe que os fatos não são tão unívocos assim.

• Sua família precisou deixar a Alemanha por conta do nazismo. Como você lê a ascensão da direita ao redor do mundo? Você percebe semelhanças de cenários entre nosso momento atual e os anos do entreguerras?
No último ano, comecei a entender finalmente o que aconteceu nos anos 1930. Já li muito sobre a ascensão do nazismo, sobre como a civilidade da cultura alemã foi sendo corroída pela propaganda e as mentiras, mas confesso que nunca havia compreendido mesmo, de fundo. Como muita gente, achava que aquilo era algo específico ao contexto da época, alguma anomalia que nunca poderia se repetir. Agora, vejo como é banal e rápida essa deterioração. Hitler não era nada fora do comum, de início. Apenas um demagogo populista como tantos que vemos por aí… e um exímio comunicador, que sabia manipular seu público, como o Trump. O crescimento dele foi alimentado por pessoas que se achavam espertas, que acreditaram que poderiam controlar a fera. Muitos políticos, banqueiros, industriais, inclusive alguns judeus, apoiaram o nazismo como instrumento para conter o comunismo, e depois foram engolidos pelo monstro que criaram. Tenho pavor quando vejo pessoas inteligentes defendendo ou insuflando o discurso de ódio de alguém como o Bolsonaro. Aquilo ali é um tumor maligno.
• Seu bisavô, Hugo Simon, acreditou que poderia parar Hitler com a ajuda de amigos intelectuais e de publicações na imprensa. Qual a culpa da mídia na criação de ditadores e figuras absolutistas?
É uma pergunta vasta. Não sei se consigo dar uma resposta à altura. Mas, quando olhamos para o que aconteceu na Alemanha na década de 1930, fica claro que a primeira vitória dos nazistas foi na guerra midiática de manipulação da informação. Goebbels inventou a “pós-verdade” e os “fatos alternativos”. Publicava seus próprios jornais, recheados de mentiras deslavadas, como tantos sites políticos nos dias de hoje. Mas o discurso do ódio só ganhou repercussão maior porque encontrou eco na imprensa mainstream. O Alfred Hugenberg, que controlava sozinho metade da imprensa alemã, teve enorme responsabilidade nisso. Os jornais têm a obrigação moral de manter os padrões de bom jornalismo. Nem precisaria dizer isso, em tempos normais; é uma obviedade. Mas, não é o que a gente vê por aí. O nível do jornalismo vem piorando significativamente nos últimos anos, no Brasil. Só para citar o exemplo mais escancarado, faz tempo que a Veja deixou de lado a ética jornalística. Mas ela não está sozinha. Os donos das grandes mídias estão jogando um jogo muito perigoso. Parece que se esqueceram o que acontece com os jornais quando as ditaduras assumem o poder.

O grande desafio do livro foi de subordinar esse apuro histórico todo a uma estrutura de romance. A narrativa ficcional pede uma coerência e uma unidade que muitas vezes faltam à vida. Tive que resistir à tentação de arrolar todos os dados disponíveis, senão ficaria maçante.

• Você tem uma carreira de destaque como historiador da arte e do design. De que maneira isso se relaciona com o seu fazer literário?
Meus primeiros livros de ficção e de não-ficção foram publicados no mesmo ano, 2000. Sempre tive muito cuidado para manter as duas coisas separadas, e fui publicando livros nas duas áreas desde então, como se fossem vidas paralelas. O remanescente acabou bagunçando meu coreto. Confesso que foi um alívio. Aquela separação era uma maluquice minha. Há várias maneiras em que o trabalho de história da arte impactou a escrita do livro. Pelo fato de meu bisavô ter sido colecionador de arte e meu avô ter sido escultor, era impossível contar a história deles sem falar de artes plásticas. Além do mais, eu não teria dado conta do trabalho de pesquisa e reconstituição histórica, se não fosse minha experiência anterior com arquivos e fontes primárias. Acho que o mais importante foi a prática de olhar e analisar imagens. A narrativa do livro é muito calcada em fotografias. Vários leitores têm comentado que daria um filme. Não sei. Na minha cabeça, são sempre as fotos que se sobrepõem.
• Quando você descobriu a verdade a respeito de sua própria história, prometeu a sua mãe guardar segredo. O livro é uma quebra da promessa ou você se liberta de um fardo que era obrigado a carregar?
Eu não prometi nada! Ela que me impôs essa interdição, que eu acabei carregando por muitos anos. Não sinto que tenha quebrado nenhuma promessa. Ao contrário, a partir do momento que encarei o desafio de escrever o livro, comecei a cumprir uma promessa. De resgatar a memória dessas pessoas e restituir a elas um pouco do que lhes foi subtraído. Ao longo do processo de escrita, tive a sensação de que era uma libertação não só para mim, mas, de algum modo que nem sei se entendo direito, para muita gente que já morreu. Não sou religioso, muito menos espírita, mas não consigo encontrar outra maneira de expressar isso.

Os jornais têm a obrigação moral de manter os padrões de bom jornalismo. Nem precisaria dizer isso, em tempos normais; é uma obviedade. Mas, não é o que a gente vê por aí. O nível do jornalismo vem piorando significativamente nos últimos anos, no Brasil.

• Além do resgate memorialístico, você tenta recuperar as obras de arte pertencentes a sua família. Como tem sido essa operação?
Tem sido um aprendizado. Apesar da minha formação, não possuía nenhum conhecimento de mercado de arte ou de restituição de bens espoliados. Até a venda d’O Grito do Munch, em 2012, sempre evitei lidar com esses assuntos. Depois daquele episódio, que foi quase como ser espoliado uma segunda vez, tive que aprender na marra. A sorte é que não estou sozinho. Faço tudo em comum acordo com minha mãe e meu irmão, e temos assessoria de advogados e especialistas e até mesmo de alguns abnegados que trabalham de graça porque acreditam na necessidade de se fazer justiça. Os resultados são lentos. É muito difícil localizar obras que desapareceram oitenta anos atrás, e quase impossível provar que se tem direito a elas. Até hoje, conseguimos recuperar muito pouco.

>>> Leia resenha de O remanescente

Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

Rascunho