Carta a Noll

Como animais em exposição, os escritores são avaliados por sua performance social
02/05/2017

O que dizer a você, Noll, depois que você partiu e supondo, apenas supondo, que você ainda possa me escuta? Você sabe: sou um cético. Não acredito na eternidade. Mas não posso negar que em minha memória, totalmente inteiro, você continua a existir. Então é com a memória — essa memória, do homem que conheci — que agora falo. Existem sempre muitas maneiras de conversar. É verdade que com você, Noll, as conversas eram diferentes. Você as transformava em monólogos. Não os monólogos tristes dos escritores pedantes — que enchem o peito para falar de si. Mas os monólogos dos que sabem ouvir, essa arte tão necessária e, no entanto, tão difícil, que eu mesmo, admito, tenho dificuldades de exercitar.

Mas, se é com a memória — minha memória — que converso, então vamos a ela. Vamos ao amparo consolador das recordações. Lembro de uma vez em que, estando em Porto Alegre para a Feira do Livro, você me convidou para almoçar. Foi um convite vacilante, mas muito amoroso — exatamente como você, meu amigo. Você mesmo escolheu o restaurante, do Theatro São Pedro, no centro histórico da cidade, onde fomos atendidos por garçons de borboleta, que patinavam com suas bandejas, lentos e silenciosos, imitando os fantasmas. A casa estava vazia. Vazia e quieta. Alguns garçons ainda arrumavam as mesas. Logo pensei: tudo ali se relacionava a você, Noll, especialmente o vazio, a precariedade e o silêncio, três elementos fundamentais não só da sua escrita, mas do homem que você foi. Tudo aquilo que a maioria das pessoas (e eu mesmo, sei disso) nunca conseguiu, de fato, compreender.

Lembro, também, que, desde a chegada do serviço, banais torradas com manteiga, eu comecei a me incomodar com sua mudez. Tolo, tentei enfrentá-la com um tosco tagarelar. Experimentei assuntos variados, me esforcei mesmo, mas nada o entusiasmava. Sem sucesso, eu queria acordá-lo. Eu, o estúpido. Eu, o cego. Você me respondia com monossílabos, e mantinha o olhar distante, como se eu não estivesse realmente ali. Até que, desanimado, calei-me também. Almoçamos devagar no restaurante ainda em preparo. O ruído das cadeiras, dos carrinhos, dos talheres — e só. Quietos como dois condenados, que nada mais têm a pedir, a não ser a clemência do silêncio. Recusamos a sobremesa. Enfim, nos despedimos, com o abraço caloroso de sempre.

Ao entrar no táxi para o aeroporto, eu já me perguntava: “Será que eu disse alguma coisa errada? Será que, sem perceber isso, eu o feri?”. Sempre admirei sua delicadeza, Noll, seu estilo discreto, quase invisível, seu apego à introspecção. Eles correspondem a seus escritos — de certo modo, eles os explicam. Eles nos ajudam a ler. Mas, naquele encontro, seu silêncio me pesou demais. Estudei com os jesuítas, sempre acho que fiz alguma coisa errada, que disse algo que não devia dizer — em resumo: que a culpa é minha. Mas o que havia de errado ali?

Assim que cheguei em casa, peguei o telefone e, agoniado, liguei para você. Tratei logo de me desculpar: “Acho que o aborreci, Noll, mas não consigo entender com o quê, você podia me explicar?”. Você, mais uma vez, ouviu minhas lamentações em silêncio — o mesmo silêncio de que arrancava as palavras gritantes de sua escrita. Em seguida, em voz pausada, distante, quase ausente, se limitou a dizer: “Meu amigo, depois de tanto tempo, você ainda não me conhece?”. Talvez por isso, porque você estava quase sempre em silêncio, eu me sinto no direito, agora, de escrever essa carta, para a qual não haverá resposta. Ainda assim, não é fácil escrevê-la. Falar com o silêncio: existe algo mais perturbador? E, no entanto, é com o silêncio ameaçador das páginas em branco que os escritores conversam. Eu já devia ter me acostumado, mas acho que nunca vou me acostumar, Noll. Sou agitado, sou inquieto — você me conhece. Você se foi e eu continuo a tagarelar.

Depois de sua partida, alguns repórteres me telefonaram em busca de um testemunho. Você sabe que eu me esforcei, mas tudo me pareceu vulgar e insuficiente. “Noll era o maior narrador vivo do Brasil”, arrisquei a avaliação enfática — embora sempre achasse isso mesmo. Um site do sul destacou minhas palavras; mas será que você cabe realmente nelas? Uma vez, Noll, você me disse que considerava a literatura uma espécie de religião. Para me ajudar, e sem saber disso, um amigo, Marcelo Torres, me mandou hoje uma frase de Pessoa: “A literatura é uma confissão de que a vida não basta”. É nesse sentido, de algo que não espelha a vida, que não basta, mas a ultrapassa, que eu entendi a sua frase.

Vivemos dias banais. A literatura anda em descrédito. Como animais em exposição, os escritores são avaliados por sua performance social, por suas vendas, por seus prêmios, por sua produtividade. Não são mais escritores, mas “produtores de texto”. Peças mecânicas de uma grande máquina. Homens práticos — tudo aquilo por que você nunca se interessou em ser. A etimologia diz que a religião significa, em sua origem, “ligar novamente”. “Religare”. Mas ligar, religar, a quê? Não importa: esse objeto perdido e perseguido leva os escritores a escrever e isso basta. Sua literatura, Noll, sempre foi movida pelo princípio da perseguição. Da busca incansável e nunca satisfeita. Seus protagonistas estão sempre correndo e tentando e perseguindo; mas o fracasso costuma ser seu único prêmio.

Continuo com minhas memórias. Há dois meses, não muito mais que isso, arrumando alguns livros na biblioteca, lembrei, de repente, de você. Resolvi lhe telefonar. Você lembra? Você me atendeu com alegria. Eu, o insistente, não resisti: “Você está sumido, Noll. Está tudo bem mesmo?”. A roda do tempo girou para trás. Tudo se repetia. A frase foi quase a mesma: “Está tudo bem, meu amigo. Tudo bem, sim. Você ainda não se acostumou com meu silêncio?”. Pois é, Noll. Fiquei pensando que a dificuldade era — é — minha. Não havia nada de errado em você, sou eu quem não suporto sua resistência às palavras. Como se você me dissesse: “A um escritor não cabe falar, a um escritor cabe escrever”. O silêncio é a “máquina de ser” que você descreve em um de seus relatos. Enfrentar o silêncio, sustentá-lo até o limite da resistência, transformá-lo em um breve gaguejar: eis, em resumo, tudo o que um escritor pode fazer. Não mais que isso.

Por isso tudo, Noll, agora que você não está mais aqui, insisto em lhe escrever. Não pude ir a seu enterro. Na hora prevista para o sepultamento, fechei-me, eu também, em silêncio. Era a melhor forma que encontrei de me comunicar com você. Muito melhor do que essa carta que você nunca lerá. Seu silêncio raras vezes foi compreendido. Sua figura esquiva parecia, a muitos, estranha. Sua escrita em jatos — o avesso louco do silêncio —, ainda hoje parece, a muitos, não só irrespirável, mas inaceitável. Como disse Fabricio Carpinejar em um artigo veemente: poucos foram os que, na verdade, o aceitaram. Os que enfrentaram de frente o ardor de suas palavras. Agora me resta reler seus livros. Em silêncio — em absoluto silêncio — como faz qualquer leitor. Se você ainda estiver em algum lugar, receba meu abraço. E me perdoe por essa tagarelice sem fim, que é só uma tentativa inútil de esconder meu medo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho