O texto no espelho

O original, com o tempo, torna-se nebuloso, dificultando sua apreensão imediata
27/04/2017

À mesa do jantar senta-se conosco Miguel de Cervantes Saavedra. Em debate, o texto de Dom Quixote de la Mancha. Não parecia sólido o registro, do ponto de vista formal. Não era sólida a linguagem. Seria então líquido o texto?

Mas se é líquido e fluido o texto, como podem ser sólidos os sentidos? Como preservar os sentidos se meu mero olhar já perturba e distorce o original? A mera leitura já parece provocar marolas, quando não maremotos, nessa superfície instável que compõe o texto. Esse mar revolto de sentidos.

Mas ao tradutor não basta a leitura. Importa ler e reler. A tarefa do tradutor, em certo sentido, é criar significados. Nesse esforço, envolver a dureza da palavra física — fina mas concreta representação em tinta sobre papel — na névoa suave dos sentidos. Fazer a transição textual que chamamos tradução. Pôr o texto no espelho de outra língua.

. Não precisa sequer haver transição para outra língua. Com o tempo, o papel parece encher-se de significados mortiços. Fantasmas que se despregam do texto e continuamente o assombram. E assombram leitores e tradutores.

Com o tempo, cada passagem do original parece suscitar agudas desconfianças de interpretações anteriores. Cada passagem parece cobrar veementemente uma nova leitura. Com o tempo, o original se transforma, antes de tudo, na alavanca que ergue a tradução.

No espelho, olhando o texto e a si mesmo, o tradutor tenta deixar que o original lhe atravesse a mente, desfiado de sentidos, purgado de imperfeições, para virar só ideia, só sentimento. E tenta então traduzir só esse sentimento, vazando enfim algo realmente novo e digno de ser lido como novo original.

A tradução obriga o tradutor a desdobrar sua visão, a fim de abarcar tanto uma múltipla apreensão semântica do original como uma múltipla expressão semântica no texto traduzido. Nada mais próximo, talvez, de um profundo mergulho na alma humana. Incursão às profundezas de onde provêm as línguas e seu ferramental. É isso que provoca a tradução: reflexão sobre a natureza da linguagem e seu papel na formação do espírito humano.

Não se trata, portanto, de uma escritura leviana. Nem de um exercício de livre escritura. A tradução nada tem de livre. A tradução é isso: escrever não livremente, mas sujeitando-se às amarras e aos fios — frouxos ou tesos — que ligam o original à sua derivação em outra língua. Ater-se às amarras, mas com sábia resignação, temperada pelo claro entendimento de que não há quem ponha arreio nessa insana proliferação de significados que nossos olhos testemunham a cada momento.

Não há quem ponha freio ao turbilhão gerado pela associação de um meio instável — o texto líquido — à natureza incessantemente criadora e caótica do pensamento. Tentamos, sim, minorar os danos. A tradução funciona, de certa forma, e paradoxalmente, como irrealizável modo de contenção. Como irrealizável busca de literalidade.

Deixemos a esperança toda na porta de entrada. Deixemos na entrada, especialmente, a expectativa de literalidade, qualquer literalidade. Como traduzir literalmente se é impossível escrever literalmente? Como escrever literalmente se a linguagem, ela mesma, não é literal, mas desabridamente metafórica?

Como sequer aceitar a ideia de literalidade, se o próprio conceito de literal parece indicar uma espécie de paralisia do texto? Justo o texto, esse meio tão líquido e instável, que não se submete a nenhum tipo de paralisia, que não aceita o torpor. Justo o texto, que revela seu verdadeiro ânimo em fabulação e desacato.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho