Carta a um suicida

Diante da turbulência contemporânea, muitos se perguntam: “O que fazer?”
Ilustração: Tereza Yamashita
27/04/2017

A carta que inspira essas meditações não foi escrita, na verdade, a um suicida, mas à mãe de um suicida. Foi enviada em 8 de maio de 1932 pelo escritor Hermann Hesse a uma leitora anônima. Eu a encontro nas Cartas escolhidas, de Hesse, em edição de 1999 da Editorial Sudamericana, de Buenos Aires. Começo pelo alemão Hermann Hesse (1877-1972), um escritor que marcou profundamente minha juventude. Que a inspirou, mas também a desestruturou.

Fui um adolescente bastante deprimido. Embora nunca tenha pensado em suicídio, e essa ideia até me horrorizasse — como até hoje me horroriza —, via-me, quase sempre, em situações-limite, sem solução, oprimido por um mundo que era muito maior do que eu e que me engolia. Uma de minhas salvações foi descobrir, um dia, em uma papelaria de Copacabana, por acaso, um exemplar de O lobo da estepe, romance que Hesse publicou em 1927 e que comprei movido apenas pelo título que oscilava entre o sedutor e o assustador.

Devorei-o. Depois li Demian, de 1917, li também Sidarta, de 1922, e cheguei enfim ao Jogo das contas de vidro, de 1943, romance imenso em que, admito, eu me perdi. Larguei-o pelo meio, mas a escrita de Hesse continuou a me assombrar e, como um tênue e diáfano facho de luz em meio a minha escuridão, a me conduzir. No fim do século 20, já de cabelos grisalhos, enfim, descobri as cartas de Hesse. Estima-se que o escritor alemão recebeu, e respondeu, mais de 30 mil cartas ao longo de toda a vida. Foi um homem aberto ao diálogo, e isso já se expõe escandalosamente em sua literatura.

Nos tempos tensos e desanimadores em que vivemos, lembro-me, de repente, das cartas de Hesse e a elas recorro mais uma vez. Por acaso, sempre por acaso, esbarro na carta à mãe de um suicida. O escritor atribui o sofrimento do jovem suicida não à falta de liberdade e à opressão, mas, ao contrário, ao excesso de liberdade. Em outras palavras: à ausência de limites, características, ele acredita, que marcam o seu tempo. Provavelmente marcam também o nosso tempo. É uma questão complexa, pois a ausência de limites, em vez de expandir o espaço da liberdade, anula qualquer chance de liberdade. E a liberdade — sobretudo em nosso sofrido Brasil — está novamente sob grande risco. Mais que nunca, precisamos defendê-la com coragem.

“Penso em seu filho com simpatia e como o maior respeito diante de seu ato”, diz Hesse, “ainda que em si não deva se tornar um ato exemplar”. Hesse não defende o suicídio, mas também não o condena: tenta compreendê-lo. Eis o ponto que mais me interessa na breve carta: a tentativa de entender uma situação adversa, de não fugir dela, de não disfarçá-la, de não abandoná-la sob a pecha da loucura, ou da devassidão. De não abrandar o horror. Tudo aquilo que hoje, um tanto sem combalidos, muitas vezes evitamos.

Agora mesmo, pelo celular, recebi a mensagem de uma amiga que diz assim: “O Brasil está muito complicado. Prefiro não tomar posição agora e simplesmente não pensar. Prefiro deixar para mais tarde”. A atitude de minha amiga, aparentemente sensata, configura, na verdade, uma fuga. O medo de olhar o horror nos olhos. Foi provavelmente para fugir do insuportável que o jovem suicida alemão optou pelo suicídio. De seu ato, podemos arrancar uma mensagem tardia, mas talvez útil: de nada adianta olhar para o lado, fingir que não se vê, esquivar-se. Tudo o que ele conseguiu foi perder a vida: foi perder a si mesmo.

Em fevereiro de 1933, Hermann Hesse recebe uma carta de um estudante de Potsdam, a capital de Brandemburgo. A carta lhe parece confusa; o escritor não chega a entender o que o rapaz procura e nem por que ele lhe escreve. Eis outro tema dos dias de hoje: a confusão. A realidade parece ultrapassar nossos mecanismos de digestão mental. É para escapar da confusão que minha amiga, imitando o Bartleby de Herman Melville, me diz: “Prefiro deixar para mais tarde”. Ou, nas palavras do personagem de Melville: “É melhor não”. Não há mais tarde, tudo o que temos é o agora. Só dele podemos partir. “Recebi sua carta mas, lamentavelmente, não me ficam claras nem sua situação, nem sua pergunta”, começa Hesse em sua resposta. “Só consigo concluir que você duvida de si mesmo, porque se impõe exigências particularmente elevadas.” Eis outro ponto chave: a importância de começar sempre pelas pequenas coisas.

Diante da turbulência contemporânea, muitas pessoas se perguntam: “O que fazer?”. Muitas se perdem em longas divagações inacessíveis, em longas interrogações inúteis, em longos sofrimentos, que apenas as massacram. Contudo, existem sempre pequenas coisas, postas bem diante de nosso nariz, que podemos não só enxergar, como também fazer. Ou pelo menos tentar fazer. O estudante de Potsdam provavelmente deseja coisas demais — e, ao fazer isso, não consegue dar um nome a seu desejo.

Tantos de nós, sufocados por um presente insuportável, preferem não tomar nada a sério. O cinismo como solução (falsa solução) é o tema da Carta a um jovem, que Hesse assina no verão de 1932. “Chegou sua carta. Ela se parece com muitas outras que recebo. Evidencia uma típica posição de sua geração: cinismo por falta de responsabilidade, desespero motivado pela anarquia.” Hesse oferece seu diagnóstico: “Não há em você a vontade de servir”. Diante da realidade dolorosa, repulsiva, muitas vezes optamos pelo descaso, e até pelo descaramento, como se nada nos dissesse respeito. Como disse ainda minha amiga em sua triste mensagem: “O Brasil é problema dos outros. Vou cuidar da minha vida”.

Hesse toca em um ponto delicado, mas decisivo: o desespero. De fato, andamos todos um tanto aflitos, mas isso é diferente de entregar-se ao desalento. Diz ainda: “Se não podes tomar nada a sério, pelo menos tente tomar a sério a si mesmo”. Desistir de si, e mesmo assim continuar a viver, eis a mais arrepiante forma de suicídio. Trata-se de um suicídio moral. “Sua vida tem tanto sentido quanto o que você for capaz de dar a si mesmo”, diz Hesse. Sustentar nossos projetos. Agarrar-se ao que temos de melhor. Apesar de tudo, não desistir de acreditar nos outros. Construir um sentido para si mesmo e dele fazer seu caminho.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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