Por que criar?

O desejo de tentar dar mais potência à vida nos leva a criar coisas, materiais e imateriais
Ilustração: Dê Almeida
23/04/2017

Quando me perguntaram o que eu achava de participar de uma conversa sobre o tema “por que criar?”, a primeira coisa que me veio à mente foi o início do filme 2001, uma odisseia no espaço: quando os primeiros Homo habilis começam a criar utensílios. Subitamente, depois de se agredirem, um deles joga um osso para o alto e, em câmara lenta, o osso se transforma em uma espécie de sonda espacial.

Se Stanley Kubrick não nos diz por que criar, ele nos mostra ao menos que nós criamos. Ele nos lembra que nós criamos. A fração de tempo entre o osso que sobe e a sonda espacial que flutua no espaço representa alguns poucos milhões de anos, e nesse piscar de olhos, nesse entretempo, a humanidade vai tramar algumas coisinhas interessantes: se eu, fraco que sou, não consigo matar um mamute, se eu, com fome, não consigo enfrentar um bisão usando apenas as mãos, o que é que eu posso fazer? Eu melhoro o potencial das mãos, eu crio uma lança. E se na ponta dessa lança eu fixo uma pedra pontuda, eu tenho uma arma ainda mais eficaz. E se as coisas são pesadas e desajeitadas para carregar, cria-se a roda, e se é preciso atravessar o mar, cria-se um barco. E se devemos ir mais rápido, criamos um carro, um avião. E, enfim, a sonda espacial, se quisermos voltar ao exemplo do filme 2001.

Então, eu me pergunto, e vos pergunto: se, no lugar de um hominídeo, fosse outro o animal a jogar o osso? Um lobo, uma vaca, um pássaro. Esse osso arremessado ao céu — apenas hipoteticamente — se tornaria em que milhões de anos mais tarde? Nada mais que o mesmo osso. Podemos dizer aqui que a gente fala do desenvolvimento da cultura humana. Somos capazes de conhecer e, mais que isso, de tecer diferentes conhecimentos para criar. A besta-fera é muito mais forte do que eu, ela tem a força, os dentes afiados; eu, eu sou fraco. Mas ao longo dos anos, eu apareço com uma lança, depois com um fuzil de caça, abatedouros e pistolas pneumáticas, etc., e as bestas continuam as mesmas, valendo-se de seus corpos, nada mais. Eu falei de pistolas pneumáticas e poderia falar de outras maneiras de abater animais atualmente para concluir, sem dificuldade, que criar não significa criar somente coisas boas para todos. Afinal, criamos também muita estupidez. No início do meu segundo romance, O beijo de Schiller, o personagem Emílio Meister brinca:

Os humanos são mais inteligentes do que os outros animais. Porém, mais estúpidos também. Ao criar o navio, o homem inventou o naufrágio. Do mesmo modo, com a inteligência, trouxe a mediocridade e a parvoíce. Exclusividades da espécie.

muito curioso que em francês nós tenhamos um jogo de palavras como esse: naître (nascer) e connaître (conhecer). As duas palavras têm origens diferentes, mas podemos ser seduzidos a dizer que cada vez que inventamos alguma coisa nascemos com ela, mais ou menos como Heráclito já avisava. Nenhuma grande criação vai nos deixar impassíveis, toda grande criação recombina aquilo que fomos. Por isso nascemos quando conhecemos.

Muitos utensílios são extensões do nosso corpo (a lança, a roda, o microscópio e a luneta, o martelo, o pincel…). Há o substantivo utensílio, que é parente do adjetivo útil. Assim, a lança, por exemplo, é um utensílio útil, o mesmo se dá com a roda, o microscópio e a luneta, o martelo, o pincel.

Peguemos esse último exemplo, o pincel. É ele uma extensão de nosso corpo? Certamente, das nossas mãos e braços. Mas aquilo que fez o pincel de Caravaggio, de Matisse, de Portinari não é mais uma simples extensão de seus corpos. Portanto, não criamos utensílios apenas para fazer coisas úteis ou, melhor, para aumentar o potencial de nosso corpo físico, mas também para mostrar e amplificar no mundo externo aquilo que se passa no mundo interno.

Assim chegamos, creio eu, ao território da arte, à extensão do imaginário. A arte é uma espécie de costura entre a subjetividade (que implica a existência de um sujeito) e a objetividade (que implica a existência de um objeto: um livro, uma tela, um filme, o próprio corpo). Nessa tal costura, linhas e tecidos se tornam indistintos, tudo é texto e textura, linha e entrelinha.

Antenas subjetivas
Se falamos de subjetividade e objetividade, talvez não seja um abuso tomar emprestado do arquiteto e filósofo francês Paul Virilio o conceito de trajetividade e aplicar essa ideia de trajeto à arte, a essa ligação entre o sujeito e o objeto que, no fim das contas, caracteriza nossa experiência de mundo. Trajeto de mãos duplas. Se há um objeto fruto do fazer artístico, também há um mundo objetivo a priori, sempre filtrado por antenas subjetivas.

Acabamos falando do Homo habilis, capaz de fazer coisas concretas, mas podemos pensar também no Homo ludens. Foi o pensador holandês Johan Huizinga quem disse que, após o Homo faber e talvez no mesmo nível do Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar nessas nomenclaturas. A relação quase inseparável entre a imaginação lúdica e a criação objetiva tem muito a nos dizer sobre a pergunta: por que criar?

É a essa questão central que podemos voltar. Não parece difícil responder por que criamos coisas úteis como uma roda, uma lança, uma luneta. Mas por que criamos a arte é uma pergunta um pouco mais complexa. Há os utensílios que utilizamos para fazer arte. Mas isso que produzimos com os utensílios (a literatura, a dança, a pintura) é útil? Serve para alguma coisa? Tão simples saber para que serve um martelo. Mas para que serve uma sinfonia? Por que escrevemos ficção, poesia?

Na literatura, como na arte de modo geral, criamos para tentar dar mais potência à vida e amplificá-la, testar limites dessa vida que é pequena, que não consegue comportar todas as nossas vontades.

A arte existe porque a vida não basta. Essa afirmação não é minha, infelizmente, ela foi dita por um grande poeta brasileiro, Ferreira Gullar. Quer dizer: não há script finalizado para a vida antes que a vida aconteça. A vida não é prêt-à-porter. É algo que a gente inventa, mesmo quem não dança, não escreve, não lê. Quando nos projetamos no futuro (que pode ser o que eu vou comer depois de terminar aqui, ou o que eu farei da minha vida, ou como será o futuro do mundo), procuramos, um pouco no escuro, uma direção. Projetar significa lançar para a frente (o jeter francês), para o devir, para um território que não existe ainda. Ou seja, fazemos isso o tempo todo. Os outros animais nascem quase completos e estão programados para assumir suas funções de animais. Nós também, de certa forma, mas o buraco é mais embaixo. Somos, para o bem e para o mal, um pouco diferentes, e ficamos criando respostas para perguntas do tipo quem somos nós, de onde viemos, para onde vamos, por que criar.

Mario Vargas Llosa diz algo que pode nos ajudar (o livro se chama — atenção para o título — A verdade das mentiras). Diz ele: “Sonho lúcido, fantasia encarnada, a ficção nos completa, seres mutilados a quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma só vida e ao mesmo tempo os apetites e as fantasias de desejar milhares de outras”.

A linguagem e a cultura nos jogam no plano do simbólico.

Se temos o desejo de viver mais que uma vida (já que na vida real a cada escolha que fazemos, precisamos desistir de muitas outras), o que a gente faz para alargar a existência, para sair, ao menos simbolicamente, da camisa de força onde nos encontramos fatalmente presos? Há outras possibilidades além da arte, claro. A religião, por exemplo, busca uma outra vida no fim dessa vida, no além (é uma promessa tentadora). Mas há também a arte, que, aliás, tanto já se encontrou no passado com a religião.

É por isso, por causa desse nosso desejo de viver mais que a vida presente, que a gente representa, que a gente não apenas descobre coisas, mas cria coisas, materiais e imateriais. Há uma boa diferença entre descobrir e criar. Nesse caso, poderíamos nos lembrar dos conceitos de dedução, indução e abdução, presentes em Aristóteles e depois em Charles Peirce, mas creio que isso estenderia demais a conversa. É suficiente dizer que podemos ser criativos, isto é, pegar experiências que nos atravessaram (curiosamente “experiência” se aproxima etimologicamente de travessia, perigo, pirata) e criar ligações inesperadas, ligações perigosas. A criatividade consiste em criar novas conexões com os utensílios imateriais dos quais dispomos, os quais colecionamos e colocamos em dialogismo.

Na literatura, como na arte de modo geral, criamos para tentar dar mais potência à vida e amplificá-la, testar limites dessa vida que é pequena, que não consegue comportar todas as nossas vontades. Somos muito pequenos, pequenos demais, miseravelmente pequenos, mas ainda assim maiores do que o modelinho comer, reproduzir-se, defender a sobrevivência.

NOTA
Este ensaio é uma adaptação da conferência Créer, pourquoi?, apresentada em novembro de 2016 na Maison pour tous Voltaire, em Montpellier, França, no evento 5 jour + 5 nuits – l’expérience esthétique.

Cezar Tridapalli

Nasceu em Curitiba, em 1974. Em 2011, lançou seu primeiro romance, Pequena biografia de desejos (7Letras). Em 2013, venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, com o romance O beijo de Schiller, a ser publicado pela Arte & Letra em 2014.

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