A vigésima quinta hora (1)

Os últimos dias de Hitler e as pessoas que o cercavam na intimidade
Brunhilde Pomsel, ex-secretária de Joseph Goebbels morreu aos 106 anos.
28/03/2017

Brunhilde Pomsel faleceu no dia 27 de janeiro deste 2017, aos 106 anos, no Dia Internacional de Comemoração em Memória das Vítimas do Holocausto. Justo nesse dia.

Ela poderia ser uma das tantas senhoras que falecem em asilos de idosos (bateu as botinhas num asilo de Munique, cidade que está na história do Nazismo com grande destaque) quase todos os dias, e não estaria sendo citada aqui, caso não tivesse, em sua biografia, este detalhe (que não é detalhe): Brunhilde Pomsel — ex-secretária pessoal e estenógrafa de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler.

A morte da Pomsel foi confirmada pelo cineasta Christian Krönes que, ao lado de mais três diretores (para que tantos?), produziu um documentário sobre a secretária centenária, intitulado Ein deutsches Leben (Uma vida alemã), lançado em 2016.

Em 1933, a loura e fresca Brunhilde jovem se filiou ao Partido Nazista, justamente no ano da chegada de Hitler ao poder na Alemanha. (“Por que não? Todo mundo fazia isto”, justifica ela em entrevista no documentário.) Eu acredito. Quase “todo mundo”, sim, estava fascinado pelo nazifascismo, e Pomsel fez carreira dentro dele. Em 1942, ela conseguiu uma colocação no escritório de Goebbels como uma de suas seis assistentes.

Bem, chega de Brunhilde. Que descanse em paz — se é que é possível, para essa anciã que afirmou, de cara limpa (?), nada saber sobre “o que acontecia com os judeus”, etc., na Alemanha nazista.

O assunto mesmo do qual quero começar a tratar é o Fascismo em si — essa sombria, muito sombria, fonte de horrores que está se revelando presente no Brasil nas formas mais diversas possíveis, obscuras, estranhas, inesperadas e (todas) horríveis.

A própria Alemanha tem seus detestáveis neonazistas, porém ela também tomou coragem, e está olhando, conseguindo olhar, na face de Hitler. Há alguns anos, o filme Der Untergang, do diretor Oliver Hirschbiegel foi exibido em 400 salas alemãs e esteve nas capas das duas revistas semanais mais influentes (Der Spiegel e Stern) da Alemanha reunificada, cuja atitude já não é a de empurrar o passado para debaixo do tapete de grama que ainda forra o abrigo subterrâneo nazista (porque o longa-metragem — aqui intitulado A queda — trata dos últimos dias do Führer, no bunker de Berlim).

O ator Bruno Ganz encarnou, no filme, um Hitler “imediato”, deu-lhe um rosto e demais atitudes de um homenzinho colérico, de bigodinho aparado como um cocô quadrado de pombo acima da boca que sabia, como ninguém, gritar pela odiosa tese da “raça pura”. E esse “Adolf” de Ganz/Hirschbiegel se parece, perturbadoramente, com qualquer um de nós, necessitando ir ao banheiro, assoando o nariz e se despedindo, educadamente, da secretária — para dar um tiro na cabeça. É um “próximo”, um vizinho nosso, um (podem me acusar de exagero, tudo bem) super-coxinha malditamente equivocado, que estava decidido a transformar num inferno total a vida das pessoas na Alemanha dos anos 1930-45, exatamente como aqui, coxinhas se embrenharam pelo ridículo para dar protagonismo a Bolsonaros e outros arremedos tropicais-ridículos do nazifascismo.

Der Untergang se baseou nos relatos de Gertrude “Trauld” Junge, outra secretária que já havia protagonizado Im Toten Winkel (documentário de 95 minutos no qual recordava os três anos em que foi a mais jovem assistente do ditador do III Reich) e também noutros depoimentos sobre o que aconteceu na noite e na madrugada daquele dia primeiro de maio, já não visto por Hitler. Será?

Muitos duvidam das “recordações” de todos que estavam vivendo em intimidade com Hitler, no bunker claustrofóbico, assim como encaram com reserva todas as fontes de informações russas sobre o polêmico assunto o “fim de Hitler” — porque não há outras fontes senão os nazistas do staff do ditador, sobreviventes da guerra, e os soviéticos que chegaram primeiro no último esconderijo do homem mais odiado da Europa de sessenta e poucos anos atrás.

Os americanos poderiam ter avançado sobre Berlim, troféu supremo, na frente dos russos mais temidos do que todos (pelos alemãs, acima de tudo), porém as tropas dos generais Eisenhower, Simpson, Patton e Bradley se detiveram, no último momento, no rio Elba, por ordem do presidente Roosevelt, o comandante-em-chefe. Durante muito tempo se acreditou num acordo — firmado em 12 de fevereiro, na cidade de Ialta (Ucrânia) — garantindo aos soviéticos a primazia na tomada de Berlim (e a sua divisão, posterior, em quatro “zonas de influência”). Parte dos documentos militares russos e americanos liberados nos anos de 1960 desmentiram a versão “conspiratória” e tornaram possível entender os fatos de maneira bem mais simples: Ike era de opinião que não se devia lançar as tropas contra um suposto reduto alemão, fortíssimo, tanto ao sul quanto ao norte, com ordens severas de “combate até o último homem”, o que poderia resultar em perdas aliadas em torno de 100 mil soldados, talvez. Parados na linha do rio, a “perda” americana seria mais política do que em vidas (Eisenhower nunca foi um bom político, e era um general às vezes hesitante demais). Isso explica que, aos russos, tenha sido mais ou menos “concedido” o privilégio de hastear a bandeira vermelha sobre o Reichstag ao custo de quantas vidas fossem necessárias… contanto que se pudesse colocar as mãos no acuado Führer da Alemanha.

O fim de Adolf, Eva, Joseph…
Entre os dias 13 e 14 de fevereiro de 1945, a sexta cidade mais industrializada do Reich (Dresden) já sofrera bombardeios em escala nunca vista, com 1,2 mil aviões britânicos e americanos despejando 3,3 mil toneladas de bombas que mataram 35 mil pessoas, a maioria nas proximidades de alvos não-militares.

Em abril, estava sendo a vez de Berlim, com devastação maior ainda, porque se tratava da capital do inimigo, uma cidade reduzida a 2,6 milhões de habitantes. Esse total (que já fora de quase 4 milhões, em 1939) era formado de mais ou menos 600 mil crianças abaixo de dez anos, velhos, feridos e 2 milhões de mulheres que um planfleto supostamente assinado pelo russo Ilya Ehrenburg ameaçava grosseiramente.

Apesar disso, Hitler ainda passava as noites em claro, debruçado sobre mapas do cinturão de defesa da cidade, imaginando uma resistência impossível e até uma louca contra-ofensiva conduzida por tropas de adolescentes que nunca haviam empunhado uma arma. No bunker, entre refeições de carne e verduras estocadas, bebidas caras e café para todos, ele se mantinha animado daquela força estranha que contaminava os auxiliares e as pessoas próximas do cabo de guerra catapultado da liderança do Partido Nacional-Socialista para se tornar Chanceler e, afinal, Fürher, em poucos anos. E talvez fosse continuar assim, delirante por maio adentro — até ser capturado pelos soviéticos — se um fato não tivesse vindo quebrar-lhe o ânimo e colocá-lo de frente para a derrota inevitável e desonrosa, no final da tarde do dia 29 de abril de 1945.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

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