Fuga para o Oriente

Procuro as imagens de uma Tóquio mágica, mas esbarro na brutalidade do presente
Ilustração: Bruno Schier
27/03/2017

Tento tomar distância do Ocidente, me agarro à leitura dos grandes escritores japoneses. Yukio Mishima, Yasunari Kawabata, Haruki Murakami, Kenzaburo Oe. Vejo e revejo sem parar os filmes de Akira Kurosawa. Através deles, luto para chegar ao reverso das coisas, tento respirar e ainda acreditar. Nunca estive no Japão. De alguma forma, “evito” ir até lá, embora deseje muito. O que me impede? Digo a mim mesmo que é meu horror aos terremotos. Mas já estive em Los Angeles no dia seguinte a um grande terremoto, já enfrentei terremotos na Grécia: não, não é isso. O que é, então? O dinheiro, claro, o dinheiro… É uma viagem cara. É preciso pensar muitas vezes e é preciso se organizar bem. Mas por que não?

Até que minha amiga Márcia Lahtermaher me dá um presente. Refiro-me a Toquiotas, lindo livro com fotografias de Tóquio tomadas por Tom Boechat (Usina de Imagem, Vitória, 2015). Livro a que me abraço com a mesma ansiedade com que me ligo às ficções japonesas. No entanto — e eis o choque, mas eis também o que secretamente eu desejava encontrar —, essas fotografias secretas e obscuras revelam-me uma Tóquio, um Japão, que nunca pensei que viesse a ver. Tom Boechat me obrigada a ver o impensável que, no entanto, não passa do óbvio. A ver o que durante o tempo vemos, mas não consideramos ver. Ele me conduz, com suas fotos obscuras e desafiadoras, ao reverso do real, em que, contudo, todos nós vivemos. Assim também no Japão. Assim também em Tóquio.

Computadores se enfileiram em cabines sinistras. Parecem telefones. Parecem caixas bancárias. Na luminosidade absurda do contemporâneo, também em Tóquio, e aqui uma parte de meus sonhos rapidamente se desmancha, estamos mergulhados na repetição. Ainda agora terminei de ler Beleza e tristeza, último romance de Kawabata. Uma ficção absurdamente bela. Também nesse gesto de despedida de Kawabata, o Japão que se aproxima do eterno exibe sua outra face deprimente. Tudo se agiganta, mas, no mesmo ato, tudo se esfarela. Dor e prazer não se separam — eis o que Kawabata nos lança na cara, sem nenhuma piedade, sem nenhum pudor. Sob os rituais, as crenças, os gestos lentos, a sutileza, o mundo se abre e se desmascara. Sim: também na literatura algo despenca.

Na escrita de Kawabata, porém, ainda parece haver algo em que posso me agarrar. Pelo menos, assim leio. Assim consigo ler. Mas nas fotos é tudo escandaloso demais. Nelas, Boechat faz um pacto diabólico com o real. Não temos saída. Procuro as imagens de uma Tóquio mágica, mas esbarro na brutalidade do presente. Tóquio está em qualquer lugar. É qualquer cidade. É só “mais uma”, e é isso o que me horroriza. No entanto, preciso suportar o olhar e avançar em meu livro. O anonimato de um estacionamento. Dezenas de varandas iluminadas, rasgando a noite, todas exatamente iguais. Uma escada de segurança com sua lâmpada vermelha que sinaliza o vazio. As grades — e as pequenas bandeiras — de um estabelecimento comercial que desaparece na noite escura.

Procuro, e encontro, à distância, um bar iluminado. Entrevejo as frágeis luzes do teto, o balcão de serviço, as estantes com bebidas, as janelas exatamente iguais. Não vejo ninguém. Na calçada, do lado de fora, uma bicicleta esquecida, que se ampara em um poste decorado por sinais de trânsito. Um semáforo indica outra luz vermelha: ou será amarela? Ninguém na rua, nem carros, nem pessoas. Nada. Em outra fotografia, uma parede pichada (como em qualquer cidade do mundo) serve de moldura para uma única janela de escritório. Mais uma vez, desmentindo as lendas da cidade super povoada, um escritório desabitado. Cadeiras vazias olham para a parede. Luzes inúteis, como as de qualquer lugar, registram apenas um hábito. Mais uma vez, Tóquio é qualquer lugar. Parece mesmo não haver saída.

Em um estacionamento, onde as árvores apenas se deixam entrever na escuridão, um único carro, uma única luz. Mas ali estão todos os carros e todas as luzes. Ali está o Mesmo. Agora, no interior de uma lanchonete, um senhor careca, imenso, de costas, parece examinar o cardápio. Há um preço — que não compreendo — afixado na vitrine. Há um cozinheiro de branco, aparentemente jovem, que frita alguma iguaria e que tem pela frente o destino de todos os cozinheiros. Ou não? Ou será meu pessimismo que invade a fotografia e a subverte? Serei, eu, com meu olhar cansado, que a desfiguro?

A pia decadente de um lavado. Uma escada vazia, que traz até um hall onde se destaca a porta de um elevador. Onde está Tóquio, eu me pergunto? Mas Tóquio é aqui mesmo. Em meio a um espaço obscuro de passagem, que pode ser uma pista para automóveis, uma coluna solitária, medonha, triste, se exibe sem glória. Agora um toalete masculinho. De um lado o reservado, do outro o mictório, separados por duas pias. Nas paredes e no chão, ladrilhos, em um branco encardido, dissolvem a paisagem. Tudo, na verdade, se desfigura. Figuras que nada representam. Agora um homem, de camisa social e gravata, olhando para o chão e carregando uma pasta de trabalho, caminha ao longo de uma parede cheia de furos através dos quais uma luz dourada escapa. Aqui, ainda há a promessa de alguma beleza. Mas será?

Uma escada de saída — ou de entrada? Tanto faz. Outra escada, ainda mais triste, que se ergue ao lado do que pode ser a porta de um elevador, mas pode não ser. Através de uma porta de vidro, um homem se dedica a sua refeição japonesa. No lado de fora — eis a “natureza” que mostra suas garras — um engradado, alguma caixas, uma roldana, um tapete enrolado. Outra porta fechada, e acima, em letras amarelas contra a luz vermelha, as palavras inglesas: “Trouble Peach”. Estamos em Tóquio, mas podemos estar em qualquer lugar. Um homem de terno, visto através de uma janela de vidro, medita entre garrafas de saquê em um balcão de bar.

Agora as colunas assustadoras que sustentam um viaduto. Sempre a noite, de que as frágeis luminárias não podem dar conta. Um homem de guarda-chuva atravessa um par de trilhos que conduzem sabe-se lá em que direção. Uma escada longa, e mal iluminada, que leva, aparentemente, a lugar algum. Outro viaduto — outro homem de guarda-chuva que corre contra a noite. Os prédios imensos com as janelas devassadas por uma luz que não serve para nada. Fala-se muito da relação dos japoneses com o Vazio. Nas fotografias de Tom Boechat, porém, até o Vazio — que promete elevação e encontro — exibe seu lado banal.

As fotos de Boechat me paralisam. Elas me esmagam. Será que exibem a realidade ou, ao contrário, a escondem? Terei eu, mais uma vez, caído na grande trapaça? Caminho até a estante e guardo o livro que ganhei de Márcia. Há nesse gesto uma reverência que se confunde com o medo. Nessas fotografias se esconde uma chave que não consigo girar. A Tóquio que Boechat captura, muito além da realidade, desmascara minhas próprias limitações. Cidade do assombro, ela me empurra de volta às palavras. Pelo menos aqui sei onde piso.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho