Sem medo de final feliz

"Sem gentileza", da sul-africana Futhi Ntshingila, apresenta uma história sobre sobrevivência e superação
Futhi Ntshingila, autora de “Sem gentileza”
27/03/2017

Denunciar a realidade de seu país e dar esperança de mudanças — os objetivos da sul-africana Futhi Ntshingila em Sem gentileza, publicado pela Dublinense (é a primeira publicação fora do país da autora), ficam evidentes logo no primeiro capítulo. A literatura foi o instrumento que a autora encontrou para seu protesto.

Ntshingila chama atenção para a realidade dos guetos da África do Sul nos anos do Apartheid. Quase tudo no livro é duro e triste, desde a vida das personagens principais — Mvelo e Zola — até o lugar onde moram e as situações por que passam.

Mvelo é uma menina de 14 anos, que mora com a mãe em uma favela. Ela frequenta a igreja constantemente, na esperança de mudar de vida cantando música gospel — ela chega até a ser incentivada pelo pastor. Porém, a intenção dele é só uma: ser próximo o suficiente dela para conseguir estuprá-la. O resultado dos seus sonhos é uma gravidez indesejada e uma situação mais desesperadora do que antes.

Ao mesmo tempo, Zola, mãe de Mvelo, sofre não só por não poder ajudar mais a filha, mas também por estar definhando de Aids. Mais uma vítima de uma epidemia que assola o país, morre lentamente sem ter acesso a medicamentos e cuidados médicos.

As situações que mãe e filha vivem parecem deixá-las sem muitas alternativas e conforme as tragédias se desenrolam, elas devem achar novas formas de viver. Essas personagens parecem se definir de maneira simples: elas não têm opção a não ser continuar tentando e resistir, mesmo quando as tentativas são inúteis.

Aos poucos, conforme Zola fica mais e mais fraca, o papel de mãe e filha quase se inverte. Já grávida, Mvelo deve cuidar da mãe acamada, do bebê que cresce dentro dela e de si mesma. Um dos maiores aspectos do livro é mostrar como a menina precisa, por conta das circunstâncias da sua vida, amadurecer precocemente para conseguir sobreviver.

Um dos principais cenários da história é um assentamento ilegal, onde fica a favela em que vivem. É um espaço no qual a segregação se materializa e boa parte dos personagens se molda frente à dureza de suas vidas.

A narrativa, porém, começa a se ampliar conforme agrega outros personagens, que se relacionam de alguma forma com a mãe e a filha. Um deles é o pai de Mvelo e a história interrompida de amor com Zola. Outro personagem masculino é Sipho, um antigo namorado de Zola, que permanece presente na vida das duas.

Uma outra personagem central é Nonceba, que personifica uma realidade sul-africana diferente. Filha de emigrantes, volta para o país em busca de uma conexão e uma identidade que não sentia até então. Em seu retorno às raízes, mostra a força das mulheres africanas. Além disso, é bem-sucedida profissionalmente e simboliza a possibilidade de uma outra realidade.

(Algo interessante na narrativa de Ntshingila se mostra ao descrever Nonceba, sempre comparada com mitos e divindades africanas, ao mesmo tempo recuperando e valorizando as narrativas daquele povo).

Nonceba se relaciona com Zola e Mvelo de uma maneira muito peculiar: também ex-namorada de Sipho, nutre um carinho pela menina. O reencontro delas se torna um ponto-chave da narrativa, mudando os destinos de ambas.

Além disso, somos apresentados a um casal branco, cuja qualidade de vida é muito diferente da mostrada até então. Porém, não se conformam com a realidade do país e buscam, em pequenas atitudes, mudar a situação. Eles têm também questões não resolvidas com o passado e mostram como o apartheid afetou a vida do país.

Um dos maiores aspectos do livro é mostrar como a menina precisa, por conta das circunstâncias da sua vida, amadurecer precocemente para conseguir sobreviver.

Pontos de esperança
Conforme encaminha a narrativa, Ntshingila entrelaça cada vez mais a vida desses personagens. Alguns pontos da cidade se tornam aos poucos uma rede conforme se unem de uma maneira pouco provável. E, além de todas as dificuldades narradas no livro, a autora se preocupa em colocar alguns pontos de esperança, como um vizinho solidário e uma família acolhedora.

Sem gentileza é um livro que se baseia principalmente na força de sua história e na vida das personagens do que nas suas características narrativas. Como o próprio título já explicita, o romance mostra um mundo quase sem gentilezas. É uma realidade cruel: Aids, estupro, segregação racial e falta de saneamento básico e sistema de saúde.

O objetivo de Ntshingila é principalmente denunciar uma realidade, chamar a atenção para a maneira com que muitas pessoas vivem em seu país — e a literatura é a forma que encontrou para transmitir essa mensagem. Tanto que os acontecimentos históricos, como o fim do apartheid, não são narrados ou explicados no livro, que foca em como a vida dos personagens foi afetada por isso.

Com o foco na vida dos personagens e nos acontecimentos entre eles, a linguagem do livro é simples. Ele é narrado em terceira pessoa, apresentando poucos diálogos e frases mais curtas.

Muito se falou sobre a fala no TED de Chimamanda Ngozi Adichie — The danger of a single story (O perigo da história única). Na palestra, a autora nigeriana apresenta o perigo cultural de se formar uma narrativa única das pessoas — dizer que todo nigeriano é pobre (financeira e culturalmente) é um dos exemplos — quando na realidade pessoas, países e culturas são muito mais complexas do que isso. Uma narrativa única é redutora.

Ntshingila consegue habilmente trabalhar com essa noção. Em alguns momentos, suas narrativas (menina que engravida cedo vítima de estupro, mulher que morre ainda jovem de Aids) podem parecer estereótipos. As imagens já exploradas em tantas outras mídias parecem se repetir. Porém, ao dar uma voz própria para essas personagens, ela apresenta alguns clichês com um tom diferente.

Existe uma certa ironia: conforme as situações se apresentam para os personagens, eles mesmos se dão conta de que estão caindo naquele lugar-comum, que estão entrando numa situação que viram acontecer com outros e até tentaram evitar, mas falharam. A autora mostra que certas coisas se tornam estereótipos justamente porque acontecem com as pessoas — tanto que alguns fatos voltam em diferentes personagens e algumas histórias se repetem.

Assim, Ntshingila assume e nega a narrativa única ao mesmo tempo. Ela não tenta fugir dos clichês que já existem — ao contrário, ela os pega para si e coloca em sua narrativa, ao mesmo tempo que tenta mostrar como ainda assim as pessoas têm uma voz, uma identidade. Ela mostra como o estereótipo não é a única característica dessas pessoas, como não é só isso que as define.

Conforme se encaminha para o término da narrativa, alguns leitores podem começar a prever o final da história. Um pouco forçado, o desfecho parece orquestrado demais para funcionar para todos, como um final feliz de um conto de fadas. Mas, depois das histórias e das vidas dessas pessoas, alguém pode culpar a autora por um final assim? O que resta é um grande alívio — e uma pontada de esperança.

Sem gentileza
Futhi Ntshingila
Trad.: Hilton Lima
Dublinense
160 págs.
Futhi Ntshingila
Nasceu em Pietermaritzburg, na África do Sul, em 1974. Sem gentileza é seu segundo romance e foi publicado originalmente em 2014. O primeiro, Shameless, de 2008, ainda não foi publicado no Brasil. Formada em jornalismo e mestre em Resolução de Conflitos, trabalha no escritório da presidência sul-africana e mora em Pretória.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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