Excesso de benevolência

"Velórios", de Rodrigo Melo Franco de Andrade, contou com apoio entusiasmado de grandes nomes da literatura brasileira
Rodrigo Melo Franco de Andrade, autor de ‘Velórios”
27/03/2017

Velórios, de Rodrigo Melo Franco de Andrade, publicado em 1936, é desses livros que, graças ao apoio de parcela da crítica e de alguns colegas de ofício, se tornaram fetiches da literatura brasileira. Manuel Bandeira ressalta os “raros dons de observação e composição”. João Alphonsus fala de “páginas notáveis”. Lúcio Cardoso afirma que o autor segue “a linha natural iniciada por Machado de Assis”. Antonio Candido salienta a “forte originalidade” e o “classicismo moderno”.

É natural, portanto, que o leitor, ao se aproximar do volumezinho, abra-o movido à leitura reverente, como se daquelas poucas páginas emanasse algum poder sobrenatural ou mágico. Sentimento, aliás, ampliado quando descobrimos que o autor abandonou a literatura, após lançar Velórios, para se dedicar “de corpo e alma”, diz a Nota da Editora em meu exemplar, à direção do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob o comando do ministro da Educação, Gustavo Capanema. Tal escolha reforçou o fetichismo e sobrepôs a este o mito do servidor público que, apesar da genialidade literária, desprezou a glória e, num “escrúpulo extremo”, exagera a Nota, “consagrou-se à causa da preservação de nossos bens culturais”. As palavras lutam para nos convencer: estamos diante do gênio-herói, capaz de marcar a literatura para sempre e, sacrificando-se, abandoná-la e proteger a memória nacional.

Velórios foi, portanto, o enterro do homo literatus — mas garantiu ao escritor fama eterna. Situação experimentada — ao menos parcialmente — por um dos defuntos que compõem o livro, no conto O Príncipe dos Prosadores: dois amigos conversam debruçados sobre o caixão; a narrativa abre com a fala do primeiro — “Este é que teria sido, se quisesse, o Príncipe dos Prosadores” —, que aponta o corpo “entre os quatro círios tremeluzindo à brisa que soprava pela janela aberta” e salienta a prosa inigualável, abandonada, contudo, pelas “exigências da atividade profissional”. O segundo amigo, mais realista, acende um cigarro e lança “olhar distraído ao cadáver, querendo ponderar que no Brasil faltava a noção precisa do que fosse um prosador digno desse nome”. Mas o primeiro, comovido, não dá espaço — e segue elogiando, “com método”, o “artista consumado”, seus “contos e fantasias brilhantes”, o “vigor e a concisão de suas melhores páginas”.

Ora, esses elogios guardam certa ironia — recordam o prêmio que alguns dos cérebros supostamente brilhantes do sistema literário oferecem ao escritor que não escreveu, que preferiu, por quaisquer motivos, o silêncio. Silêncio que, em alguns casos, é prova de desprezo pela literatura. Logo, elogios que representam menosprezo por quem se aventura na incerteza de escrever e trata a literatura como a verdadeira razão de sua vida — e não um bibelô a mais na cristaleira da bisavó falecida.

Mas vamos aos textos de Rodrigo M. F. de Andrade.

Prolixo e repetitivo
O volume composto de sete relatos abre com Dona Guiomar. Do conflito apresentado nas primeiras linhas, entre José e a namorada que lhe nega alguns minutos a mais de carinho, desprega-se o passado do jovem e de sua família. O pai e as irmãs morreram, restando José, um irmão e a mãe, cujo nome dá título à narrativa. As personagens Teotônio — o pai que deliciava as visitas com sua conversa simpática — e Dona Guiomar — com sua “tendência incoercível para a ternura” — vão sendo construídas por um narrador aparentemente seguro, que introduz não só a decadência familiar mas, sobretudo, o drama da mulher, obrigada a aceitar sucessivas infidelidades do marido, afável com visitas e amantes, autoritário com esposa e filhos. O narrador, contudo, revela-se algo prolixo, repetitivo — e o pior: incapaz de conceder materialidade aos conflitos e dar-lhes um desfecho. O relato se dilui a cada página, sem nenhum clímax, como se lêssemos um cronista apaixonado não pela história, mas por sua própria voz ou pela arquitetura da frase, incapaz de obrigar os personagens à ação. Esse narrador monopoliza o relato com sua linguagem de tom distante e sua psicologia esforçada mas inconvincente, nascida do que ele conta — e não do próprio comportamento dos atores:

Desde os primeiros tempos do casamento ele fora dado a mulheres, com a peculiaridade de aproximar da família as suas conquistas por meio de expedientes diversos. Quanto a isso Dona Guiomar nunca se iludiu: acompanhara sempre as iniciativas de Teotônio com bastante perspicácia, embora não lhe ocorresse absolutamente protestar contra aquela infidelidade quase à sua vista. Não lhe passava pela cabeça reclamar, porque a autoridade que o marido lhe impunha era incompatível com a menor veleidade de reação de parte dela, pelo menos frente a frente.

Voz altiva, de quem não deseja se comprometer com o que diz — dessa forma a história é conduzida, não sem que o autor insista nas características do temperamento de Dona Guiomar, evidentes desde as primeiras páginas. Quanto a José, abandonado após a cena inicial, jamais saberemos se superou a paixão não correspondida.

Esse narrador que delineia personagens interessantes, mas mostra-se incapaz de colocá-los em ação, de permitir que ajam e se entrechoquem, retorna em várias narrativas. Martiniano e a campesina é outro exemplo de psicologia superficial, informações repetidas, ausência de trama e desfecho banal. O narrador esboça sua atração por Maria José, filha de Martiniano, mas não segue essa linha narrativa, optando por se prender à história que o coronel Timóteo lhe conta, a respeito do defunto:

Martiniano falava habitualmente como se o vocabulário vulgar fosse imprestável para exprimir o que tinha a dizer. As expressões mais extravagantes e os termos técnicos mais arrevesados despencavam de sua boca, em cachoeira. Por essa forma, as observações e os conceitos que lhe ocor­riam, ainda que os mais comuns, acabavam sofrendo uma deformação surpreendente. E a impressão de grotesco produ­zida pela sua terminologia era ainda agravada pela dicção estranha que ele tinha. Parecia permanentemente resfriado, com as narinas obstruídas, porque emitia todas as consoan­tes nasais como se fossem explosivas:

— Isbênia é beiga cobo uba betralhadora.

Autômatos
O estilo alcança, em alguns trechos, o “classicismo moderno” sugerido por Candido, a descrição da personagem é bem-humorada e ameaça nos cativar — mas todos se comportam como autômatos.

Não contente em repisar os problemas apontados, Rodrigo M. F. de Andrade complica ainda mais a vida do leitor em narrativas centradas na formação da personalidade de dois garotos: Quando minha avó morreu e Iniciação. Ambas apresentam pré-adolescentes curiosos, mas os conflitos íntimos jamais são resolvidos ou superados. Todos os problemas terminam como se fossem nada. O narrador não teme, por exemplo, encerrar a experiência de luto do seu personagem com um simples “Mas não pensei mais em minha avó”.

Analisar O enterro de Seu Ernesto e Nortista (este, extremamente enfadonho) seria repetir minhas observações.

Mas nem tudo se perde em Velórios. Dois relatos são, realmente, contos. E bons. Em O Príncipe dos Prosadores, perfeita narrativa de atmosfera, de humor sutil, certa delicada sensualidade emana da personagem que vem rezar ao lado do defunto — sensualidade e adultério construídos graças aos “cabelos molhados perto da nuca”, à pele translúcida e ao diálogo de sugestivas repetições travado pelos dois amigos. Seu Magalhães suicidou-se é peça inteligente, em que Seu Aderne migra de uma certeza a outra, mudando de opinião a respeito do sócio falecido. As reações das personagens femininas são, de início, incompreensíveis, mas fazem parte da técnica de protelação utilizada pelo autor para criar estranhamento e, sem nenhuma pressa, num timing perfeito, nos fazer dar boas risadas.

Depois de fechar o volume, lembrei-me do segundo amigo, em O Príncipe dos Prosadores. Na verdade, ele é o alter ego de Rodrigo M. F. de Andrade, que olhou demoradamente para seus escritos, leu as críticas elogiosas e concluiu que “no Brasil faltava a noção precisa do que fosse um prosador digno desse nome”. Abandonar a literatura, no seu caso, foi uma demonstração de autocrítica e lucidez. A lucidez que faltou a seus amigos tão benevolentes.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Dyonélio Machado e Os ratos.

Rodrigo Melo Franco de Andrade
Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 18 de agosto de 1893, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 11 de maio de 1969. Advogado, jornalista e escritor, formou-se em direito pela Universidade do Rio de Janeiro. Foi redator-chefe e diretor da Revista do Brasil. Chefe de gabinete de Francisco Campos, ministro da Educação e Saúde Pública no primeiro governo Vargas. Chefiou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde a fundação do órgão, em 1937, até 1968. Além de Velórios, publicou Brasil: monumentos his­tóricos e arqueológicos (1952); Rio Branco e Gastão da Cunha (1953); Artistas coloniais (1958).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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