Pequena prosa em versos

Coletânea apresenta ao público brasileiro uma "Wislawa Szymborska" fascinada pelas coisas comuns
Wislawa Szymborska, autora de “Um amor feliz”
27/03/2017

Ainda estamos longe de perceber o alcance do impacto que representou, em meados do século 19, Charles Baudelaire no seio das artes poéticas. Os tremores que se originaram fazem-se sentir em ondas cada vez menos perceptíveis, mas nem por isso menos efetivas, assim como cada desastre natural afeta a dinâmica dos povos, na medida em que, para que possam a eles sobreviver, devem dar origem a soluções sempre renovadas. De Baudelaire já se afirmou que combinou o formalismo classicista de Racine com a dicção de um jornalista. Com isso, Claudel trouxe à luz a revolução prosaica que Baudelaire levou a cabo no centro de forças que “o poético” dominava.

Durante muito tempo esse “poético” representou a possibilidade de elevação de conteúdos (em geral espirituais) diante da relva pobre das coisas ordinárias e prosaicas. O Tratado da versificação portuguesa, de Pedro José da Fonseca, publicado ainda no século 18 diferencia a poesia da prosa pelo que se destaca do vulgar e do plebeu: na tentativa de diferenciação, entre um modo supostamente mais elaborado e incomum e a linguagem da forma oral corriqueira, reside um ranço contra o vulgo, contra a plebe, em uma palavra, um ranço aristocrático e estamental.

E é justamente contra esse estado de coisas que Wislawa Szymborska insurge. Seus poemas, a julgar pela tradução de Regina Przybycien, são sustentados por estruturas orais (e “vulgares”) e por eixos sintáticos muito próximos do que consideraríamos como “correntes”. Seus temas nivelam, em importância, tudo aquilo que classificamos como “grandes” e “pequenos” acontecimentos, nomes, seres e coisas. O poema Medo do palco o diz com toda a clareza:

De acordo com o cartaz que a anuncia
com o floreio art nouveau de um P maiúsculo,
inscrito nas cordas de uma lira alada,
eu deveria entrar voando, não andando

(…) lá no pódio já espreita uma mesinha,
meio de sessão espírita, com pés dourados,
e na mesinha esfumaça um castiçal  

De onde deduzo
que terei que ler à luz de velas
o que escrevi à luz de uma lâmpada comum
tac tac tac na máquina

É essa “lâmpada comum” que ilumina a poeta, e são outras coisas assim tão simples que integram o seu espanto. Distante da poesia sublime aristocrática, os poetas que se rebelaram contra o “espírito” muitas vezes se dirigiram para a materialidade chocante das escatologias viscerais ou sociais — dessa forma, se mantiveram ainda tão distante do ordinário quanto seus antepassados. Por outro lado, uma fotografia de família, uma notícia de jornal, uma descoberta arqueológica, um telefonema por engano, o fato de que as plantas não podem falar, uma poça de água, tudo isso contribui para a “Feira dos milagres” comuns de Szymborska: “um milagre melhor:/ as vacas são vacas”, “um milagre comum:/ isso de acontecerem muitos milagres comuns”.

Corriqueiros e decisivos
Mesmo a revisitação de episódios históricos que envolveram grandes personalidades dá vistas aos elementos mais corriqueiros como decisivos de destino. Como no poema Decapitação, em que Szymborska conta mais uma vez a história da prisão e condenação à decapitação de Maria Stuart, acusada de tramar contra a sua prima, Elizabeth Tudor, centralizando o foco dos acontecimentos nos detalhes das roupas escolhidas por cada uma das personagens. Maria Stuart aparece, em seu poema, decotada (e uma voz afirma: “decote vem de decollo,/ decollo significa corto o pescoço”), com uma veste “vermelha como uma hemorragia”. Elizabeth Tudor, por seu turno, aparece em trajes brancos, tendo o vestido “vitoriosamente abotoado até o queixo”. Assim é explicada a morte de Maria Stuart: “A diferença no traje — sim, dessa tenhamos certeza./ O detalhe/ é inabalável.”

Essa atenção ao detalhe, ao pequeno, plasma um mundo único a partir do objeto focado. No poema Microcosmo, a vida se torna radicalmente mais absurda com a invenção do microscópio, que dá a ver seres pequenos “diferentes até o exagero/ e já tão minúsculos/ que aquilo que ocupam no espaço/ só por piedade se pode chamar de lugar”; o que não impede que estes seres, agora postos no centro do discurso, decidam “sobre nossa vida e morte”. Já no poema No rio de Heráclito, multiplicação e unidade figuram inaugurais na imagem dos peixes: “No rio de Heráclito/ um peixe imaginou o peixe dos peixes,/ um peixe se ajoelha ante um peixe, um peixe canta para um peixe,/ e pede ao peixe um nado mais leve.”

Podemos chamar essa poética de monadológica porque nos apresenta uma imagem do mundo a partir de um conteúdo bastante particular. Leibniz, inventor do cálculo infinitesimal e da Monadologia, escreveu, certa vez, em seu Discurso de metafísica, que “quando se considera bem a conexão das coisas, pode dizer-se que, na alma de Alexandre [e nas almas em geral], há, desde sempre, restos de tudo o que lhe aconteceu e sinais de tudo o que lhe acontecerá, e até mesmo vestígios de tudo o que se passa no universo”. Podemos dizer que, de certa forma, a poesia de Szymborska considera que qualquer pessoa, objeto ou mesmo ideia de nosso cotidiano pode ser inserido nessa citação no lugar do nome de Alexandre. E, como em Leibniz a mônada implica a contenção no particular do universal existente e do universal que poderia existir, em Szymborska também uma coisa muito simples, como um mapa, pode, de fato, conter virtualmente toda a experiência espantosa do mundo que existe e dos mundos que poderiam ter existido:

Tudo aqui é pequeno, próximo e acessível.
Posso tocar os vulcões com a ponta da unha,
acariciar os polos sem luvas grossas.
Com um olhar posso
abarcar cada deserto
junto com um rio situado logo ao lado. (…) 

Gosto dos mapas porque mentem.
Porque não dão acesso à verdade crua.
Porque magnânimos e bem-humorados
abrem-me na mesa um mundo
que não é deste mundo.

De fato, muitos de seus poemas tratam daquilo a que chamamos “possibilidade”. Em Ópera bufa, Szymborska lança um olhar cuja disfunção temporal enxerga o “atual” (um romance e um ciúme) como o “ocorrido” (transformando-o em comédia e risada para um público que assiste a uma peça sobre o estranho amor 200 anos mais tarde). Já em Adolescente, a poeta se encontra, já no fim da vida, consigo mesma quando jovem por meio de um cachecol costurado “pela nossa mãe”, dividindo-se em duas. Em Ausência, pensa no que poderia ter ocorrido caso seu pai e sua mãe tivessem tido filhas com outras pessoas: “Talvez as duas até se encontrassem/ na mesma escola e na mesma sala./ Mas sem afinidades,/ sem nenhum parentesco,/ e longe uma da outra na foto da turma.// Aqui, meninas/ — diria o fotógrafo —, (…)/ estão todas aí?// — Sim, senhor, todas.”

A edição deste segundo livro de Szymborska no Brasil quer continuar o trabalho da primeira antologia de apresentação do trabalho da poeta polonesa a partir de um panorama. Dessa vez, temos o acesso a poemas de livros publicados de 1957 a 2012, acrescidos do discurso de Szymborska por ocasião da aceitação do Prêmio Nobel em 1996. A hora da publicação é oportuna, diante de um cenário nacional em que as forças prosaicas no seio de nossa poesia crescem a todo vapor criativo. O público brasileiro ainda não terá acesso, no entanto, à poesia feita pela autora na época de aderência ao realismo socialista — sua apresentação, portanto, segue incompleta, ainda que fiel ao discurso da própria Szymborska, que considera o Chamando por Yeti a sua “verdadeira” estreia literária.

De todo modo, ergue-se, ou melhor, baixa-se, entre nós, mais uma vez, a voz de Szymborska: “milhares e milhares de rostos singulares,/ cada um o primeiro e o último no tempo,/ e em cada rosto dois olhos sem par”.

Um amor feliz
Wislawa Szymborska
Trad.: Regina Przybycien
Companhia das Letras
328 págs.
Wislawa Szymborska
Nasceu em Bnin (Polônia), em 1923. Estudou literatura e sociologia. Publicou 12 coletâneas de poemas ao longo de sua vida. Em 1996, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Morreu em fevereiro de 2012.
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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