Prazer clandestino

O gaúcho Samir Machado de Machado cria romance histórico intrincado sobre o contrabando de livros eróticos
Samir Machado, autor de “Homens elegantes”
25/02/2017

Não existem livros morais ou imorais, apenas bem ou mal escritos. Ao menos, era isso que acreditava o dramaturgo irlandês Oscar Wilde ao escrever o polêmico O retrato de Dorian Gray (1890), publicado anos antes de sua morte e usado como peça fundamental no processo movido pelo Marquês de Queensberry contra Wilde — que fora amante de seu filho. A Wilde é também atribuído o texto homoerótico Teleny, ou o reverso da medalha, publicado em 1893 e disponível somente por meio de uma intrincada rede de contrabando.

A prática do mercado de negro de livros pornográficos ou eróticos não nasceu com Wilde e muito menos parou com ele. O escritor gaúcho Samir Machado de Machado usa esse gancho para compor seu intrincado romance Homens elegantes, uma bela alegoria contra a hipocrisia e uma grande homenagem metalinguística à literatura. Em 1760, um misterioso carregamento de literatura clandestina interceptado no porto do Rio de Janeiro é estopim para a busca do soldado brasileiro Érico Borges, enviado a Londres para encontrar o culpado pelo furor causado na corte.

Sem nenhuma ironia, a remessa literária que chega a Terra Brasilis tem na capa a inscrição: Catecismo. Basta ser um pouco astuto como Érico para folhear os livros e perceber que o miolo era de Fanny Hill, romance escrito em 1748 por John Cleland e que nada deixa a desejar a Sade.

Samir, mais conhecido como designer e capista que romancista, cria um retrato interessante da época, repleto de referências — de Moll Flanders a Virgílio e Dumas — e combinado a chamada alta literatura ao romance de capa e espada. Talvez, algumas dessas referências, principalmente as contemporâneas, como Seco & Molhados, James Bond e a franquia de jogos Assassin’s Creed, pareçam um tanto deslocadas, embora suas inserções ocorram quase que naturalmente na trama.

Érico, obviamente, não é o melhor arquétipo de herói, não no sentido tradicional. Logo que desembarca em Londres, com um título falso de nobreza, é recebido por cicerones, encarregados de apresentá-lo à cidade. Pouco a pouco, os personagens vão se desenleando, como um novelo de lã que cai no chão. Às investidas de Maria, sobrinha do embaixador, Érico consegue apenas esquivar-se. É no tosco e bruto padeiro Gonçalo que ele vai buscar abrigo e refúgio. Machado consegue extrair do casal algo pouco usual na literatura gay contemporânea: a real naturalidade da relação.

Machado poupa o leitor dos clichês. Tanto Érico quanto Gonçalo se distanciam dos lugares-comuns que abundam na literatura e no cinema e exalam uma virilidade que até anos atrás era quase impossível pensar em personagens homossexuais. Homens elegantes passa ao largo de qualquer publicação de nicho, nem tenta enveredar por esses bosques, e chega às livrarias em um momento no qual o tema tem ganhado cada vez mais as páginas literárias sem criar polêmica ou constranger a parte da sociedade que parece ainda viver em séculos passados.

Baile
Homens elegantes é como um grande baile de máscaras, é preciso impressionar a todos para formar correntes de aliados e inimigos. Nada é muito diferente do que vivemos hoje. O rival de Érico e sua trupe, por exemplo, é ninguém menos que conde de Bolsonaro, um sujeito homofóbico e misógino, interessado apenas em expandir seus negócios a todo custo. Questões como o “crime de sodomia” e os diretos das mulheres eram discutidos à época e ganham espaço no livro.

Capítulo por capítulo, o narrador se embrenha mais e mais em especificidades históricas, detalhes que talvez passassem desapercebidos aos leitores mais desatentos. Esse quê de documentações, de veracidade, dá o tom ao produto final. Ao nos colocar em xeque sobre o que é real e ficção, Samir Machado de Machado colocar o leitor ao seu lado — como um bom lacaio ou um amante amoroso. É como se houvesse um convênio entre realidade e imaginação.

Existe, é verdade, uma grande mística e fetichismo sobre o livro. Prova disso é um dos personagens mais divertidos e intrigantes criados por Samir: o Milanês — misto de Jorge de Burgos, de O nome da rosa, e Gato de Botas. É a ele que Érico recorre, com certa frequência, para solucionar problemas quanto à veracidade de traduções e edições.

Samir brinca, para não dizer “se vinga”, das pretensos tradutores contemporâneos, como diria Denise Bottmann. Os falsários que vertem as obras contrabandeadas para o português — Jean Melville, Pedro de Nasseti e Alexandre de Martins — parecem retirados do blogue de Denise, no qual denuncia esse mundo caótico dos bastidores literários.

Camadas
Todos os personagens são construções minuciosas de autor obcecado pela perfeição — ainda mais se levarmos em consideração o afeto que Machado tem pelo século 17, que é também o cenário do seu o romance anterior, Quatro soldados. De acordo com ele, Homens elegantes surgiu das ideias que sobraram do livro que o procede.

“A ideia da trama assumiu uma forma mais concreta quando conheci Londres pela primeira vez — a cidade que ambientava tantos dos meus livros e autores favoritos. Enquanto eu, brasileiro vindo de um estado periférico de um país em eterno atraso social, me deslumbrava feito caipira na cidade grande com uma cidade que fora o centro nervoso do mundo por tanto tempo, me ocorreu que também era sobre isso que meu livro trataria”, explica Samir em um texto publicado pela editora.

Em paralelo, o autor cria tramas que só encontram sentido quando o livro chega ao final — algo até um tanto quanto didático. Algumas se sustentam mais que outra, ainda assim é impressionante o cabedal que carrega sobre certo recorte histórico.

Isso faz de Homens elegantes um romance de camadas. O narrador, que por ora finge ser onisciente, recebe destaque maior adiante — embora parece pouco provável que soubesse de tudo que conta. São detalhes tão íntimos que podemos chamar o narrador de voyeur ou delator, sem pudor ou culpa. Não que essa estratégia desmonte a obra, mas assusta — pela surpresa e pela ingenuidade de quem lê e também pela astúcia de quem escreve.

No final, o que se percebe é que Samir consegue, com pequenos trunfos, erguer um livro magistral e que transcende gêneros — em todos os sentidos. Homens elegantes, ao contrário o que se possa imaginar é uma obra de nosso tempo, extremamente atual e simbólicos em todas as suas camadas. E, claro, é um livro muitíssimo bem escrito.

Homens elegantes
Samir Machado de Machado
576 págs.
Rocco
Samir Machado de Machado
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1981. É autor da novela O professor de botânica (2008) e do romance Quatro soldados (2013). Pela Não Editora organiza a coleção Ficção de polpa, que reúne textos do gênero. Samir é autor do blogue Sobrecapas, a respeito de design gráfico de livros.
Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

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