Utopia coletiva

Em "Nuvem negra", Eliana Cardoso revisita de maneira sintética sessenta anos da história brasileira
Eliana Cardoso, autora de “Nuvem negra”
25/02/2017

Em 24 de agosto de 1954, no meio a uma elevada onda de denúncia de corrupção, o presidente Getúlio Vargas suicida-se com um tiro no peito. A partir de então começa uma história republicana inimaginável. Depois de uma breve crise sucessória, o país cai na euforia dos anos JK, para logo se perder em mais de vinte anos de ditadura, até voltar à efêmera esperança no bojo da candidatura de Tancredo Neves. Esta morre cedo diante dos desacertos econômico de Sarney e da alegoria marqueteira de Collor. Move-se a história pelo deslumbre improvável de Itamar e os ajustes econômicos de FHC até pousar na perspectiva de uma justiça social ampla e salvadora.

São sessenta anos revisitados sinteticamente por Eliana Cardoso em seu novo romance, Nuvem negra. A gesta brasileira, no entanto, é apenas cenário para uma discussão maior: como toda esta utopia histórica tocou a vida do cidadão comum? Aí entram os antagônicos protagonistas do enredo. Manfred Mann, um engenheiro de intensa sensibilidade perplexo e perdido diante dos acontecimentos que lhe envolvem. Lotta, uma incorrigível ativista que até o fim acredita na militância política como instrumento de mudança do mundo. Kalu, uma garota assediada pelo pai e que enfrenta as intempéries de peito aberto e constrói o próprio destino.

Estas pessoas, pelos caminhos tortos que o país oferece, terminam por se encontrar em Manaus já no início do século 21. Este é o espaço ideal para olhar de longe a trajetória que viveram e o futuro que precisam construir. As conturbações políticas e sociais ainda batem às portas dos personagens, mas eles reagem, e são movidos mais pelo inventário de perdas que carregam do que pela necessidade intrínseca a cada um.

Toda esta operação cria uma forte camada psicológica nos personagens e os torna sínteses de um povo que se construiu a partir de traumas institucionais. Destarte, voltando à pergunta inicial — onde se enquadram as pessoas dentro do curso histórico? —, Eliana toca na ferida ideológica que atinge a todos. As decisões políticas interferem sim na vida do homem comum e é necessário que ele reaja para não ser engolido pelo sistema.

A autora, entretanto, não faz um romance político ou panfletário. E nem sequer um romance histórico. Seu objetivo é refletir sobre a história recente e medir suas influências. Daí a forma sintética com que trabalha a trajetória política brasileira e mesmo as vivências dos personagens. Tudo é dito com limites invioláveis de palavras, alinhavados com apenas o necessário para conduzir o leitor pelos caminhos da trama, sem os entediantes e longuíssimos discursos explicativos tão comuns em narrativas do gênero.

Assim é sintetizado o ambiente político americano no final da década de 1960:

Ela via um jovem com muito medo, fragilizado por muitas perdas, mas que ficaria bom, e o convidou a voltar ao consultório para procurar entender melhor suas ansiedades e continuar os medicamentos. Manfred não voltou para a consulta seguinte. Preferiu se juntar aos colegas num protesto contra a Guerra do Vietnã. Participou de passeatas e aplaudiu as manifestações dos negros em reação ao assassinato de Martin Luther King. Foi rebelde por um verão.

A autora, entretanto, não faz um romance político ou panfletário. E nem sequer um romance histórico. Seu objetivo é refletir sobre a história recente e medir suas influências.

Jogo constante
E tudo transcorre nesse ritmo, num minimalismo que orienta e conduz o leitor pelos caminhos nem sempre iluminados da trama. Há um jogo de constantes surpresas quanto a previsibilidade dos personagens. Manfred tem tudo, inclusive substância cultural e um diploma de engenharia de uma universidade americana, para ser um homem brilhante, um líder de seu grupo social, mas não chega a tanto. Lotta se prepara para ser uma revolucionária socialista, mudar a face de um país injusto e desigual, mas também deita por terra seus sonhos e desejos. Kalu, moça pobre do Norte do país, bolinada pelo pai e refugiada numa pensão não lá honesta, se destina à prostituição, mas se faz chef de cozinha.

Não que todos fracassem, ou decepcionem o leitor ao driblarem os destinos previsíveis, como perfeitos anti-heróis. O país, ou melhor, sua história é que vai desenhando novos possíveis futuros. Sem maniqueísmo barato — pobres bons e ricos malvados —, Eliana nos revela as imensas e incontáveis possibilidades de vidas dentro de uma sociedade complexa. E o Brasil definitivamente não comporta ingenuidades.

Um antigo samba de Noel Rosa, Samba da boa vontade, compara o Brasil “a uma criança perdulária, que anda sem vintém, mas tem a mãe que é milionária”. O romance Nuvem negra, por sua intensa modernidade, confirma a atualidade dos versos do Poeta da Vila. Este país continua insistindo na capacidade de triturar pessoas, sonhos e riquezas. As cenas passadas em Serra Pelada ilustram bem essa determinante para o retrocesso. Os homens encontram e perdem fortunas com a mesma facilidade com que chegam e partem do lugar. Não deixam sequer histórias, pois as vidas são sempre recorrências de vidas anteriores. Nada é permanente neste eterno reino do provisório.

Eliana Cardoso é uma excelente malabarista das palavras. Com certa poesia e certo lirismo — um lirismo até melancólico — nos oferece uma visão real, às vezes cruel até, de uma gente nascida e crescida sob o signo da saudade de um futuro que está por vir, sempre por vir. É o nosso sebastianismo atávico em sua plenitude. Um romance que está muito além do mero exercício ficcional. Um texto brilhante.

Nuvem negra
Eliana Cardoso
Companhia das Letras
112 págs.
Eliana Cardoso
Nasceu em Belo Horizonte (MG). Doutorou-se em economia no Massachusetts Institute of Technology. Trabalhou para o Banco Mundial na América Latina e na Ásia. Foi professora da Fundação Getúlio Vargas e estreou na literatura em 2014 com a novela Bonecas russas, finalista do prêmio São Paulo de Literatura. Atualmente é colunista do Valor Econômico.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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