A descoberta do horror

"São Bernardo" condensa todo o vigor narrativo de Graciliano Ramos
Graciliano Ramos, autor de “São Bernardo” e “Vidas secas”
25/02/2017

Quem deseja estabelecer o cânone dos ficcionistas brasileiros pode desprezar — sem receio de cometer injustiças — Graça Aranha, Raul Pompeia e Adolfo Caminha. Pode colocar em segundo plano — não tenho medo de fazê-lo — Lima Barreto, José de Alencar e Aluísio Azevedo. Mas terá de incluir Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Graciliano Ramos, cujo lugar está garantido graças à publicação de São Bernardo.

Lançado em 1934, São Bernardo é romance universal, fruto, em parte, da maturidade do autor, cuja carreira literária começara aos 40 anos, com Caetés, quando havia acumulado experiência colaborando em vários jornais, inclusive do Rio de Janeiro, voltara a Alagoas para assumir o comércio da família, ocupara cargos públicos e já era pai de vários filhos. Carreira semelhante, mutatis mutandis, à de Joseph Conrad, que publicou seu primeiro livro aos 38 anos, depois de viver infância tumultuada ao lado dos pais revolucionários, ficar órfão, cometer as loucuras da juventude e fazer respeitável carreira na marinha mercante inglesa.

Sempre que me deparo com escritores cuja carreira começou tarde, lembro-me das palavras de G. K. Chesterton: “O romance não está do lado de fora da vida, mas absolutamente em seu centro”; o romance não é “uma brincadeira, uma invenção, um convencionalismo, algo exterior”. Somadas à experiência e à dedicação de Conrad e Graciliano, tais palavras deveriam diminuir a ansiedade dos jovens que, antes de realmente viverem, nos oferecem romancinhos que são a espuma da imaturidade.

Voltando a Graciliano, uma de suas qualidades é a forma como constrói as cenas, inserindo nelas o diálogo ampliador. Veja-se, no Capítulo IV, a narração do encontro entre Paulo Honório e Luís Padilha, herdeiro da Fazenda São Bernardo — encontro para cobrança de dívidas e que garantirá ao primeiro a almejada posse da propriedade. As frases são curtas e precisas. Nenhum elemento retórico desvia nossa atenção. Cada verbo reconstrói um gesto, cada vocábulo ilumina certo trecho da paisagem chuvosa. Os detalhes — a rede encardida, as goteiras — aprofundam o abandono da fazenda. O diálogo principia com a fala do assustado Padilha. As vozes se intercalam numa negociação tensa, na qual Paulo Honório, quando parece recuar, na verdade prepara novo bote, encurralando o interlocutor. Não é diálogo, mas dança de ritmo soturno em que um dos participantes conduz o outro, por meio da insistência, da agudização dos argumentos, à derrota. A última frase — “Não tive remorsos” — é a derradeira cutilada.

Também o diálogo entre Madalena e Paulo Honório, no Capítulo XV, merece atenção. A forma direta do protagonista propor o casamento revela a rudeza de sua personalidade, mas o diálogo apresenta características curiosas de Madalena. Tratada, por parte da crítica, como mulher indefesa e idealista, que depois de aceitar o casamento é destruída pelo marido autoritário, na verdade Madalena se interessa pela união porque tem plena consciência do que isso representa em termos de ascensão social. Ela não se surpreende com a proposta; e seu gesto — “Afastou a frase com a mão fina, de dedos compridos” — repudia com frieza a fala de Paulo Honório — “Já se vê que não sou o homem ideal que a senhora tem na cabeça” —, para retrucar, calculista: “— O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honório (…). Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira, estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Jó, entende?”. A nova faceta da proposta é imediatamente incorporada pelo fazendeiro, que arremata: “(…) Se chegarmos a acordo, quem faz negócio supimpa sou eu”.

Acordo financeiro
A aspereza de Paulo Honório — também narrador da história — é irrefutável, mas falta tato a Madalena: logo após o casamento, critica, na frente de funcionários, o baixo salário de um deles, o guarda-livros Ribeiro. Seu lado calculista é reforçado pelo desejo de cuidar da correspondência da fazenda, desde que receba um salário — pedido que soaria estranho se não conhecêssemos seu verdadeiro interesse. Paulo Honório também vê o matrimônio como um acordo financeiro, no qual a gravidez de Madalena é sua “compensação” por ter de suportar as “coisas desagradáveis” que a esposa lhe diz, por ter de tratá-la como “louça fina” (Capítulo XXII).

O casamento só poderia dar errado — e a relação se enche de amargura:

(…) Madalena bordava e tinha o rosto coberto de sombras. Às vezes as sombras se adelgaçavam. E findo o trabalho, tudo convidava a gente às conversas moles, aos cochilos, ao embrutecimento. Uma aragem corria. Vinham-me arrepios bons, desejo de espreguiçar-me. Via o monte, que a fita vermelha da estrada contorna, a mata, o algodoal, a água parada do açude. Madalena soltava o bordado e enfiava os olhos na paisagem. Os olhos cresciam. Lindos olhos. Sem nos mexermos, sentíamos que nos juntávamos, cautelosamente, cada um receando magoar o outro. Sorrisos constrangidos e gestos vagos. Eu narrava o sertão. Madalena contava fatos da escola normal. Depois vinha o arrefecimento. Infalível. A escola normal! Na opinião do Silveira, as normalistas pintam o bode, e o Silveira conhece instrução pública nas pontas dos dedos, até compõe regulamentos. As moças aprendem muito na escola normal. Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis. Tenho visto algumas que recitam versos no teatro, fazem conferências e conduzem um marido ou coisa que o valha. Falam bonito no palco, mas intimamente, com as cortinas cerradas, dizem: — Me auxilia, meu bem. (Capítulo XXV)

As frases podem ser curtas, mas não há brusquidão. O período desenvolve-se numa sequência de lembranças perfeitamente encadeadas. Tudo caminha para o entendimento, mas um componente esfria o que começava a surgir… e o preconceito derrota as possibilidades de confiança mútua ou de carinho, enquanto a mulher fraca, agora quase despersonalizada, não se impõe.

O vigor narrativo de Graciliano é raro em nossa literatura. Há inúmeros trechos memoráveis em São Bernardo: o suicídio de Madalena, preparado pelo trecho de carta que o narrador encontra por acaso e pelo diálogo lacunar entre marido e mulher na capela; a decadência da fazenda, provocada pela Revolução de 30; as tensas relações do narrador com Mendonça, fazendeiro que tenta tomar parte das terras de São Bernardo: o vaivém das conversas hipócritas, as insinuações do narrador a respeito do seu plano, nunca plenamente verbalizado, de matar Mendonça, o carneiro morto para os eleitores, anúncio metafórico da decisão de matar o rival.

O núcleo de São Bernardo, contudo, é a trajetória narrativa de Paulo Honório, homem sem sobrenome, isto é, sem identidade clara. Trata-se de narrador intuitivo, dono de um plano inicial de livro, em que tenta delegar a outros a tarefa que, descobrirá, só ele pode realizar — pois da mesma forma que se apoderou da fazenda e conquistou tudo o que quis, deve se impor também sobre a linguagem.

Desonesto e violento, Paulo Honório conquista o leitor com sua visceral sinceridade. Sua amoralidade não é postiça; Graciliano não criou mais uma personagem naturalista, repleta de pose e artificialismo.

A autoconsciência de Paulo Honório cresce em dois planos que se sobrepõem: como escritor e como homem. Avançar na narrativa representa dupla vitória: sobre o emaranhado da linguagem e sobre o labirinto das suas culpas. Vitórias amargas, que impõem uma derrota: o homem que o escritor encontra possui pouquíssima honra. O narrador descobre a própria feiura, física e moral; confunde-se com Casimiro Lopes, jagunço que é o prolongamento da sua vontade; compara todos que o circundam a bichos, ecoando a fala sobre “som e fúria” de Macbeth, que transforma em “movimento e rumor”. Do suicídio de Madalena ao começo do seu exercício de rememoração e autoconhecimento passam-se dois anos. Processo que se cristaliza por meio de clarões, fragmentos que surgem e logo se apagam, com os quais também nós reunimos o conjunto imperfeito do que sabemos a respeito de nossas decisões, de nossos atos — e das consequências que provocam. Tortuoso trabalho, em que nem sempre nos empenhamos — e quando o fazemos, só com imensa dificuldade descobrimos nossas intenções. É para refletir essas dúvidas que, no último capítulo, o “se” repete-se numa triste litania. Mas quando chega ao final, Paulo Honório construiu sua narrativa e conhece a si mesmo — sabe que nada poderia ser diferente, não por culpa dos outros, mas por sua própria incapacidade. O pio da coruja o despertou para penetrar no horror da sua própria violência. O horror que Marlow, narrador e protagonista de Joseph Conrad em O coração das trevas, descobre no interior da selva africana, Paulo Honório descobre em si mesmo.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Rodrigo M. F. de Andrade e Velórios.

Graciliano Ramos
Nasceu em 27 de outubro de 1892, em Quebrângulo (AL), e faleceu no Rio de Janeiro, em 20 de março de 1953. Passou a infância acompanhando a família em constantes mudanças pelo interior de Pernambuco e Alagoas, até se fixarem em Palmeiras dos Índios. Em 1914, embarca para o Rio, onde vive um ano. Regressa ao Nordeste, onde se casa. Em 1927 é eleito prefeito de Palmeira dos Índios. Seus relatórios anuais dirigidos ao governador do Estado despertam a atenção de diversos leitores, inclusive do poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, que publica Caetés. Com São Bernardo, inicia a tríade completada pelos romances Angústia (1936) e Vidas secas (1938). Preso pelo Estado Novo, suas provações estão narradas em Memórias do cárcere (1953), libelo contra nosso atraso cultural e denúncia dos crimes da ditadura getulista.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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