Roma, citações e leitura

Daí essa vontade de ir anotando tudo o que me for ocorrendo
O poeta Murilo Mendes
26/02/2017

01.05.2001
Ainda há pouco tentava me lembrar da visita que fiz a Murilo Mendes em 1968, em Roma. Seria via Viale, 6? Quase nada me ocorre. Quadros na parede, apartamento amplo, era à tarde, a figura dele e de Saudade Cortesão palidamente na lembrança. Mesmo quando ele esteve lá em casa nos anos 70 e nos reunimos com Hélio Pelegrino, Fernando e Otto, pouco me lembro. Só de ter posto um Mozart para tocar e a alegria dos mineiros em torno dele: Otto, Hélio, Fernando indo juntos, até mesmo ao banheiro, como colegiais, para fofocar. Sim, lembro-me que Marina estava grávida de Alessandra e mostrou a casa ao Fernando.

Daí essa vontade de ir anotando tudo o que me for ocorrendo, não só porque o passado esmaece-se e fico à mercê sempre de uma pessoa que me surpreende com estórias a meu respeito, que nem sei. E também porque há uma noção de que tenho um horizonte de vida de mais uns 15 ou 20 anos (se tanto) e os 15, 20 anos últimos passaram-me rápidos, conquanto riquíssimos, em plena maturidade, a maturidade possível.

27.04.2001
Parei para reler coisas escritas anteriormente e vi pregado na página de abertura do caderno o poema de Kaváfis (Ítaca) e algumas frases lidas aqui e ali. Exemplos:

1) Flaubert sobre Balzac: “Que grande escritor seria se soubesse escrever”.

2) “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude.” (O Gattopardo, Tomasi di Lapedusa)[1].

3) Canto afegão: O céu cairá sobre nós, tradução de Manuel João Magalhães.

O céu cairá sobre nós
e ainda assim estarei por cá
para vos amedrontar.
As nossas barbas
deixarão de ser grisalhas
e os nossos ossos
regressarão à terra que
os viu nascer.
Mas ainda assim cá
estarei para
vos atrapalhar.
Há muito que este solo
sagrado deixou de ser
fértil
e as nossas mulheres são feias;
Por que quereis então
este território?

4) Anônimo:

Toda dia na África um leão acorda.
Ele sabe que deve correr
mais do que a gazela ou morrer de fome.
Todo dia na África uma gazela acorda.
Ela sabe que deve correr mais que o leão ou morrer.
Quando o sol surge no horizonte
não importa se você é leão ou gazela.
Corra!

5) Montaigne: “Eu digo a verdade: não tanto quanto desejo, mas tanto quanto ouso; e vou ousando mais à medida que envelheço”.

6) “Naquele momento começou uma nova era (pois começam a todo instante) e uma nova era pede um novo estilo.” (O homem sem qualidades, Roberto Musil)

7) Alfred W. Whitehead, Science and Modern World: “Meus dias de escrever estão terminados pois tais coisas me foram reveladas, que tudo que escrevi e ensinei parece de pouca importância”.

8) Verissimo: “Einstein morreu sem se resignar à ideia de que a verdadeira e inexpugnável glória de Deus começa onde termina a linguagem”.

Nessa viagem, por exemplo, encontrei uma reportagem sobre Charles Boxer, o historiador inglês que produziu alguns dos melhores livros sobre a cultura luso-brasileira. Recortar. Anotar. Ao contrário, anoto esparsa e ilegivelmente essas coisas. Vai ver que é assim mesmo: a vida é o que sobrenada dos palimpsestos[2].

28.05.2001
Portugal/Coimbra. Encontro de poetas articulado por Maria Irene Santos. Ela é esposa de Boaventura Santos, sociólogo bem conhecido no Brasil. Passam metade do ano numa universidade americana e a outra metade aqui.

Li poemas na Biblioteca Joanina, em Lisboa, hoje à tarde. Eu havia visto essa espantosa biblioteca com Marina há um ano, na bela viagem que fizemos a Portugal (no verão passado)[3]. E pensar que quase um ano depois estaria ali falando poemas! Ali estava o mesmo senhor que abria porta e que não permitia fotos naquela ocasião.

A leitura foi um sucesso.

Contarei noutra hora a sessão honoris causa do Harold Bloom com a presença de Saramago. Farei uma crônica sobre isto[4]. Curioso: Kaaetan Kovic, da Slovenia, lendo em esloveno: comunica mais que John Asbury em inglês. Conversei bastante com Kovic, quando descemos no aeroporto de Lisboa.

Manuel Alegre foi bem na leitura.

(Na Itália, estão elegendo Berlusconi)

NOTAS

[1] Marina traduziu belamente O Gattopardo.

[2] Essa palavra sempre me fascinou e aparece em minha poesia.

[3] As crônicas dessa viagem estão em Perdidos na Toscana, L&PM, 2009.

[4] Ver Em torno de Harold Bloom (O Globo, 16.06.2001) onde narro o encontro com Bloom e a cerimônia de homenagem a ele e a Saramago.

 

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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