O poeta maldito sob o peso embriagado da vitória moral

António é um xamã urbano, é uma hipersensibilidade subversiva
Ilustração: Tereza Yamashita
27/01/2017

Escrevo contos & romances, mas leio mais poesia que ficção. Muito mais poesia que ficção. Dos tipos de poema existentes, prefiro o poema narrativo e o poema sermonário. Muito cedo, um trio de profetas modernos — Whitman, Maiakovski & Álvaro de Campos — revelou-me as delícias do verso arrebatador, vidente, afetuoso, furioso, anarquista, selvagem.

Depois da poesia brasileira, a poesia que mais me interessa é a portuguesa. Tempos atrás até defendi uma tese na Universidade de São Paulo, cujo título — Axis mundi: o jogo de forças na lírica portuguesa contemporânea —, bastante pretensioso, aproxima xamanismo, alquimia & poesia.

(Anotação mental. Certa vez, num sonho, um poeta imaginário me disse: “A universidade é o túmulo da inteligência”. Eu precisei passar por duas universidades — graduação no Mackenzie & pós-graduação na USP — pra constatar essa verdade tão triste.)

Foi um embate estimulante. A pós-graduação queria um trabalho científico, uma proposição obediente à metodologia acadêmica. Quatro anos depois eu lhe entreguei um delírio filosófico, uma longa digressão pós-moderna. A pós-graduação aceitou, mas a contragosto. Fez cara feia. Nosso amor havia acabado. Logo depois nos divorciamos, porque a diferença de temperamento tornara-se insuportável. Foi uma separação amigável, nunca mais nos reencontramos.

Mas contei tudo isso apenas pra dizer que infelizmente António Pedro Ribeiro não foi um dos dez poetas estudados na tese de doutorado, defendida em meados de 2008. Eu conhecia apenas três poemas seus, publicados no número 9 da revista portuguesa Águas Furtadas, lançado em maio de 2006. A essa altura da redação da tese, minha orientadora não achou prudente incluir mais um autor. Aceitei, meio contrariado.

Um dos poemas publicados na Águas Furtadas foi o sensacional Declaração de amor ao primeiro-ministro, que ficou durante muito tempo escondido abaixo do limiar de minha consciência. Até que em 2010 eu reencontrei a revista quase por acaso, enquanto arrumava as estantes, e resolvi correr atrás de um ou dois livros do António. Chegaram d’além-mar, pelo correio. Gostei tanto do que li, que decidi reescrever toda a tese a fim de incluir sua voz irreverente no jogo de forças.

Como não aprecio números ímpares, fechei a nova versão da tese, que é na verdade um ensaio espiralado, com doze poetas: Adília Lopes, António Pedro Ribeiro, Gonçalo Tavares, Manuel de Freitas, Daniel Faria, Ana Marques Gastão, Inês Lourenço, José Miguel Silva, Luís Quintais, José Luís Peixoto, valter hugo mãe & Luís Serguilha.

Esses poetas ocupam diferentes posições na vasta constelação da lírica portuguesa contemporânea. Frequentemente, posições singulares & opostas — o hermetismo de Luís Serguilha e o coloquialismo de Adília Lopes, por exemplo —, tão distantes uma da outra, que soa quase incoerente empregar um só nome — poesia — para designar astros tão díspares.

Que posição ocupa António Pedro Ribeiro nessa constelação? António é o poeta da linguagem coloquial (escrita & falada), que se expressa muito bem no papel, para o silêncio dos olhos, e no púlpito, para o colorido dos ouvidos. Mas se o papel ainda é um suporte elegante, se o livro ainda irradia a aura sagrada da grande Literatura, em geral para espaços íntimos, no espaço público o local da fala é o púlpito profano dos bares & saraus.

António é um xamã urbano, é uma hipersensibilidade subversiva que denuncia, com estocadas histriônicas, a mediocridade reinante. Seus poemas atacam a distopia intelectual & emocional em que sobrevivemos, ridicularizando políticos & pop stars, jornalistas & jogadores de futebol, elevando o ócio criativo, a estética, a embriaguez, o amor e o sexo à posição de verdadeiros valores humanos.

Para o senso comum, essa hipersensibilidade subversiva corporifica-se na figura radioativa do louco ou do bufão, que vai aos bares e aos cafés derramar sobre os adormecidos e os anestesiados o óleo escaldante da poesia apocalíptica.

António também gosta de ironizar esse lugar-comum do senso comum, aceitando de bom-grado a autoimagem lúcida & louca de “Um doido que escreve à mesa da loucura/ Que se ridiculariza a si próprio e ao mundo”, “Estou doido e crio mundos/ Estou doido e assim quero ficar”.

Em meu ensaio espiralado, defendo que, há mais de cem anos, para as pessoas educadas na tradição iluminista & indiferentes à moral cristã e à retórica das religiões instituídas, a poesia é o último reduto do sagrado.

Desde que o método científico, a revolução industrial e a filosofia existencialista puseram abaixo qualquer possibilidade de existência de Deus ou de deuses, a poesia, para o indivíduo culto, transformou-se na única fonte aceitável do gozo místico.

Mesmo o mais racional & materialista dos homens não se satisfaz apenas com a existência profana. Resistente à hipocrisia dos sacerdotes profissionais e à manipulação da fé, a necessidade de se vincular a algo maior e mais profundo faz esse homem se voltar para a arte e a literatura.

É importante esclarecer que essa comunhão sagrada não acontece somente com a arte e a literatura herméticas, de natureza alquímica ou xamânica. Ela não acontece apenas com os labirintos sensoriais de um Mário Cesariny ou um Herberto Helder ou um Jorge de Lima ou um Murilo Mendes.

No mundo atual, o erudito Zaratustra e o popular Macunaíma dançam juntos, e o poder dionisíaco manifesta-se também na complexa simplicidade de poemas sem máscara nem disfarce, diretos & claros feito um beijo. Os poemas gaiatos & dançarinos de António compõem A gaia ciência da era do wi-fi e do GPS.

“A sacralização do cotidiano por meio da lírica-de-combate não precisa seguir somente a trilha de Hermes Trismegisto. Liberdade também rima com simplicidade. Além da lírica subterrânea existe a lírica de superfície. António Pedro Ribeiro admira os surrealistas, mas evita prudentemente a escrita automática tão hermética-alquímica-elitista, preferindo às charadas obscuras a anáfora da música pop.” (Axis mundi)

Sobrinho de Nietzsche (o guerrilheiro), filho de Chamfort (o homem-bomba) e neto de Montaigne (o estrategista), o poeta de Queimai o dinheiro, Café Paraíso e tantos outros manifestos ébrios pertence à pequena família de moralistas ocidentais. Moralistas não no sentido de defensores da moral e dos costumes conservadores, mas no sentido de críticos vigorosos da economia de mercado, do sistema corrompido e do pensamento reacionário, mercado-sistema-pensamento do tipo católico-capitalista-consumista.

Acompanho as manifestações regulares de António Pedro Ribeiro no feicebuque e posso garantir, também, que não há uma fronteira clara entre seus poemas em versos — perdoem-me o pleonasmo — e suas postagens em prosa. A demanda entusiasmada e a intensidade libertária são as mesmas, numa forma & noutra. Sem afetação, sem artifícios de linguagem. A pequena diferença entre a poesia e a prosa de António está na tecla Enter, sua poesia é prosa-com-enjambement.

Isso demonstra que António é um poeta-cronista. Na rede social, nos cafés ou nos livros, ele não faz pose de intelectual, de semideus beletrista. Fodam-se os beletristas, os pedantes! Bisneto de Sócrates, o poeta conversa com o leitor-ouvinte, fala mas também escuta, vive a vida, mancha-se, chora, faz graça, ri alto, copo após copo após copo.

No fundo da garrafa está o infinito. Está a força, o influxo divino. Combatendo com as armas mais sagradas — da utopia, da iluminação profana —, segue o poeta maldito sob o peso embriagado da vitória moral. Num planeta de derrotados físicos & emocionais, que outra vitória seria possível?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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