Em nome do pai

Em "Os abraços perdidos", João Chiodini retrata a dolorosa experiência de dois homens diante da paternidade
João Chiodini, autor de “Os abraços perdidos”
31/12/2016

Resenhei recentemente, aqui mesmo no Rascunho, o belíssimo livro de José Luis Peixoto (Morreste-me), um monólogo contundente e exasperado dirigido ao pai — ou, mais precisamente, um diálogo terno e profundo com um interlocutor ausente. A narrativa do escritor português é uma peça literária primorosa, atravessada por uma ternura inquietante ao revisitar a morada paterna e a simbologia despertada pela perda.

Em Os abraços perdidos, romance de estreia de João Chiodini, o autor aborda a difícil convivência do narrador-personagem com o pai — um caminhoneiro alcoólatra que vive em um pequeno quarto nos fundos de uma oficina mecânica e às vezes leva o filho pequeno a bares e bordéis situados à beira da estrada.

O contraste entre as duas figuras paternas é marcante: “Lembrando as coisas que passei com o meu pai, acho impossível encontrar algum momento de felicidade verdadeira” é a frase que abre Os abraços perdidos. O autor é ousado ao descortinar os meandros de um relacionamento marcado por agressões, ressentimentos e rancores, expondo com crueza a miséria que habita a vida familiar demarcada na narrativa — e talvez aí resida a maior qualidade da obra.

O romance estrutura-se em dois planos narrativos e em capítulos curtos e alternados: em primeira pessoa, temos o publicitário Pedro rememorando o tormentoso relacionamento vivenciado desde a infância com o pai, e, em terceira pessoa, a narrativa em torno desse mesmo personagem envolvido em um dilema diante da inesperada gravidez de sua namorada. O livro tem elementos biográficos, sobretudo no que se refere à narrativa sobre o pai.

Nessa primeira narrativa, temos uma prosa confessional carregada de densidade ao retratar o filho convivendo com os humores do pai, homem rude que tem um temperamento agressivo quando tomado pelos vapores do álcool. O menino cresce tendo medo diante da figura paterna:

Aquela foi a única vez, em toda minha vida, que ele me agrediu fisicamente. E foi suficiente para despertar em mim um grande medo de sua figura. Criei uma espécie de trauma, me tornando um menino calado em sua presença. Eu medrava até nas situações corriqueiras, como ao pedir um copo com água ou algo para comer. Nunca sabia qual seria a sua reação. Esse medo foi perdendo força na medida em que eu entendia quais eram os limites e critérios imaginados em sua cabeça (…), como um vira-lata acolhido por estranhos, que aprende o certo e o errado levando golpes de jornal no focinho.

Um fardo
O pai é retratado como um molambo, um pobre-diabo que anda de bar em bar. É um homem bruto, cheio de certezas e sentenças: “Se você quer ser caminhoneiro, precisa gostar das putas”, diz ao filho pouco antes de ele ter sua iniciação sexual. Ele acaba prisioneiro de várias drogas — primeiro o álcool, depois a cocaína e o crack. Com comportamento destrutivo, torna-se ao longo dos anos uma espécie de fardo que o filho carrega, chegando a ser levado amarrado ao oftalmologista para que não fique cego em virtude de uma catarata que avança com o tempo.

Interessante notar que na primeira narrativa o desejo do filho pequeno é tornar-se caminhoneiro, como o pai. Essa ambiguidade está presente também na personalidade do adulto, que se vê dividido entre o passado e o presente. Ele vê sua vida fracionada e tenta preencher os vazios remexendo gavetas e procurando fotos, simulacros de uma vida em comum que não teve com o pai.

Pedro vive uma relação tempestuosa com a namorada e uma situação-limite quando se depara com a possibilidade de tornar-se pai. Acossado pela dúvida, ele rememora a relação malograda com o pai e as lembranças dolorosas desse relacionamento e teme não apenas a escravidão doméstica e as responsabilidades envolvidas nos cuidados de uma criança, mas tornar-se um espelho do seu algoz. Ele não aceita a ideia de ser pai e propõe a ela interromper a gravidez.

Esse espelhamento criado pelo autor ao utilizar dois narradores cria uma reverberação interessante no interior da obra, mas poderia ter sido muito mais marcante se o autor desse maior densidade à segunda narrativa, na qual expõe o conflito entre Pedro e sua namorada. O autor encontrou na prosa confessional o tom adequado para tratar da carga emocional envolvida na primeira trama. Mas perdeu a mão na segunda, em que a densidade é alcançada somente em alguns momentos, como no trecho destacado a seguir:

Sozinho, Pedro apertou as mãos no volante, baixou a cabeça e respirou fundo. Toda a tensão daquela situação estava começando a dar sinais físicos. Contrações abdominais, as pernas balançando compulsivamente, o lábio entre os dentes. Olhou as músicas que tinha no carro. Escolheu “Stop Crying Your Heart Out”, do Oasis, e ligou num volume que cobrisse seus pensamentos. Ligou o pisca e saiu, imerso na música e distante de si mesmo, até encontrar-se estacionando no seu prédio. Encarou os comprimidos por um instante e imaginou-se entregando-os para Aline. Bastava saber se ela os pegaria. No celular, buscou pelo nome dela. Enquanto o telefone chamava, sentiu seu coração palpitando na garganta.

Repetições
Essa segunda narrativa incide em repetições. Veja-se, por exemplo, a insistência em desdobrar alguns capítulos narrando o périplo do personagem em busca de um comprimido abortivo — situação que poderia ter sido sintetizada em um único capítulo, dando lugar a outros que poderiam explorar melhor as sutilezas do drama vivido pelo personagem. O mesmo se diga do constante bate-boca entre o publicitário e a namorada, marcado pelo simplismo e pelo tom discursivo e que em certos momentos chega a resvalar na vulgaridade.

Entremeando memória e ficção, João Chiodini escreveu a obra sem intenção moralista, em linguagem simples e direta. O tom é seco e cortante e o que sobressai da narrativa é a catarse, a tentativa de expurgar pela memória e pela ficção uma experiência traumática. O autor quer se livrar das próprias lembranças — e ao fazer isso nos proporciona uma leitura inquietante.

Como observa Carlos Henrique Schroeder na apresentação da obra, na autoficção de João Chiodini “as relações disfuncionais envolvendo a paternidade ganham um tom cínico e áspero”, compondo “um doloroso retrato de uma relação consumida pelo egoísmo, o rancor e a solidão”.

A epígrafe de Paul Auster oferece outra chave para compreendermos o livro:

Não parecia um homem que ocupa um espaço, mas antes um bloco de espaço impenetrável na forma de um homem. O mundo ricocheteava nele, se espatifava de encontro a ele, às vezes aderia a ele mas nunca entrava.

João Chiodini precisou da literatura para vencer essa opacidade e se livrar da presença opressiva da figura paterna. Arrisco dizer que essa catarse foi necessária não apenas para o autor abrir caminho para outros livros, libertos agora da carga de rancor que soube retratar tão bem, mas serviu também para reconciliar-se com o pai.

O livro foi dedicado a ele, que faleceu alguns dias antes de a obra ser publicada: “Quando a capista mandou a arte, meu pai já estava doente e faleceu alguns dias depois. Ele não chegou a ler o livro. Se ele tivesse lido, acho que iria dar risadas de algumas partes e choraríamos juntos de outras. Como fizemos várias vezes”, declarou o autor em recente entrevista.

Os abraços perdidos
João Chiodini
Editora da Casa
122 págs.
João Chiodini
Nasceu em Jaraguá do Sul (SC), em 1981. É formado em Administração, com habilitação em Marketing. Publicou o livro de contos Delírio real de um amor imaginário e alguns títulos infantis. Desde 2012 escreve crônicas para o jornal O Correio do Povo, de Santa Catarina. É também editor e coordenador da Feira do Livro de Jaraguá do Sul.
Ovídio Poli Junior

É escritor e doutor em literatura brasileira pela USP. Ministra oficinas de criação literária. É curador da Off Flip das Letras e editor do Selo Off Flip.

Rascunho