Acerto de contas

"O caso Meursault", do argelino Kamel Daoud, dá voz ao árabe assassinado em O estrangeiro, de Camus
Kamel Daoud, autor de “O caso Meursault”
31/12/2016

Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

Caso alguém tenha se proposto a fazer uma lista dos melhores começos de livro de todos os tempos, nela terá figurado, sem dúvida alguma, essa magistral abertura, e numa posição de destaque. Mas o estupendo parágrafo não passa de uma pequena amostra da estatura da obra à qual pertence, pois não há lista possível de romances fundamentais da literatura do século 20 que não inclua O estrangeiro, a obra-prima de Albert Camus, lançada em 1942. Para quem não conhece ou não lembra, a história tem como protagonista o jovem Meursault que, na Argel dos anos que antecederam o movimento de libertação da Argélia do domínio francês, mata um árabe que sesteava na praia. Durante o julgamento, no qual termina condenado, vai pesar contra Meursault não a autoria do crime que ele nunca chega a negar — afinal, ele matou um árabe, um zé-ninguém que sequer merece ter um nome no livro — mas a descoberta, explorada com astúcia pela acusação e que escandaliza o tribunal, do fato de ele ter sido incapaz de derramar uma lágrima sequer no enterro da própria mãe. Certos julgamentos morais a que hoje assistimos acontecer, em diversos foros, em diversos graus e mais de sete décadas depois do lançamento de O estrangeiro, estão aí a provar a perenidade da discussão trazida à luz por Camus. Na época, entretanto, o inusitado da situação vivida pelo personagem levou o autor a não pensar seu romance como uma obra existencialista, como até hoje se tenta enquadrá-la, mas parte de uma “trilogia do absurdo”, ao lado de outras duas obras não tão famosas.

Absurdo, convenhamos, é um termo que combina à perfeição com esta segunda década do século 21. Mas para recriar a história de O estrangeiro, num engenhoso exercício de metaficção, o também argelino Kamel Daoud preferiu seguir um caminho diferente, mais próximo do realismo hoje tão em moda, ainda que mantendo uma inegável nuança intimista. O caso Meursault, obra lançada em 2013 que só agora chega ao Brasil, abre com uma bela paráfrase do início de seu célebre antecessor que, assim como aquele, prenuncia o tom que vai conduzir toda a narrativa:

Hoje, mamãe ainda está viva.

Ela não fala mais, mas poderia contar muitas coisas. Ao contrário de mim, que, de tanto remoer essa história, já quase nem me lembro dela.

Finalmente um nome
Daoud parte do episódio central do romance de Camus, a morte do árabe, que ganha finalmente um nome, Moussa, e uma família. Se quem narra a história em O estrangeiro é o próprio Meursault — uma sacada de gênio, pois não haveria melhor maneira de expor ao leitor um tipo tão introspectivo, excêntrico e ao mesmo tempo niilista do que dar voz à sua própria consciência —, em O caso Meursault Daoud escolhe como narrador o irmão de Moussa, o agora idoso Haroun, que passa os dias enfurnado num bar na periferia de Orã bebendo e partilhando suas lembranças com um estudante universitário parisiense interessado em conhecer sua versão dos acontecimentos relatados no livro de Camus.

Haroun tinha apenas sete anos quando o irmão foi morto a tiros em Argel. Segundo a “versão” de Camus, o confuso motivo do crime teve origem num desentendimento havido entre um cafetão de nome Raymond e sua amante árabe. Meursault, por ter ajudado o cafetão depondo a seu favor, foi por ele considerado um amigo e acabou envolvido num assunto que não lhe dizia respeito diretamente. Moussa, que seria irmão da garota, reuniu uns amigos para vingá-la, e houve algumas tentativas neste sentido. Ao topar com Moussa sozinho deitado na praia, depois de um almoço em que bebeu muito e com um sol impiedoso cozinhando seus miolos, o anti-herói acaba disparando cinco tiros contra o árabe. Numa passagem emblemática de O estrangeiro, só o que Meursault consegue argumentar em sua defesa é o que o calor havia sido o responsável por seu crime: ele até certo ponto tem razão, mas a debilidade da afirmação, que desperta o riso em quem assiste ao julgamento, revela um traço da personalidade que só o leitor conhece.

Personagem atraente
Haroun não é um personagem menos atraente que Meursault, ao contrário, sua história talvez seja até mais rica que a do assassino de seu irmão. A paupérrima família foi abandonada pelo pai. A mãe analfabeta, que sofreu duras provações para conseguir criar os dois filhos — a irmã prostituta seria pura invenção de Camus —, preferia acreditar que o marido tivesse sido morto e por esse motivo nunca mais havia dado notícias. Depois da morte de Moussa, o zelo excessivo de mãe unido ao sofrimento pela perda do filho preferido cai como uma rocha sobre a cabeça do caçula, que é forçado a renegar sua própria vida para viver em função da ausência do irmão. É conflito de causar frisson em analista freudiano. Mas há mais.

A ânsia de revelar a história de Moussa começa por sua obstinação em querer que o mundo conheça o nome do irmão, um batismo negado na famosa obra de Camus. Se Meursault tirou a vida de Moussa, Camus roubou-lhe o nome e consequentemente a história, e aqui está um aspecto dos mais interessantes: o que importa para Haroun não é vingar uma morte — afinal, Meursault já fora executado por ela —, mas vingar o irmão pelos vazios e imprecisões que ele encontra na versão de Camus. Obstinação também é o que leva Haroun a aprender francês para que possa narrar sua história na mesma língua de O estrangeiro — e pronunciar o nome de Moussa como um francês pronunciaria. Chega-se finalmente ao ponto em que a obstinação vira obsessão, e Haroun vai protagonizar ele próprio uma espécie de reprise do que viveu Meursault — e mais aqui não é possível adiantar, para não roubar a surpresa ao futuro leitor.

Mas Haroun não é um narrador confiável. Para além do que anuncia no início, onde atribui ao remoer incessante do caso o desbotamento de sua memória, há uma outra sutileza: o narrador avança em seu monólogo enquanto bebe e o álcool vai pregando peças em sua consciência. Isto explica por que, em certos momentos, o texto fica confuso e noutros, algo desconexo, emulando a embriaguez progressiva do personagem. Um narrador não confiável é, como se sabe, uma das joias da coroa da técnica ficcional, e Daoud sabe usá-lo com perícia, conjugando-a a um discurso de exemplar qualidade, não contido nem solto, mas exato e dotado de um ritmo e eufonia que, se a tradução para o português conseguiu manter, devem soar como música no francês original.

Há duas maneiras de se ler O caso Meursault. Pode-se encará-lo como peça autônoma, e o romance tem estrutura de sobra para sustentar a si mesmo sem qualquer referência externa que não esteja contida nos limites de suas próprias páginas. Ou pode-se lê-lo na sequência de O estrangeiro, sem dúvida a melhor opção. Não se pense, contudo, que a soma das duas obras vai ensejar que as várias lacunas sejam afinal preenchidas. Essas lacunas, na realidade, foram abertas por Daoud quando ele idealizou uma outra possibilidade para uma história já tão cristalizada em nosso imaginário que até já acreditamos ter acontecido na vida real.

E é essa a grande beleza de O caso Meursault. Nele, uma história inventada e que atravessa os anos sem descer do plano da fantasia é revisitada com um tal capricho e seriedade que a fazem parecer inusitadamente real. Maior virtude não se pode esperar da ficção.

O caso Meursault
Kamel Daoud
Trad.: Bernardo Ajzenberg
Biblioteca Azul
167 págs.
Kamel Daoud
Nasceu na Argélia em 1970. Filho de um policial, foi o único de sua família a ter acesso à educação formal. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como jornalista em Orã, onde vive, e teve artigos publicados em revistas e jornais franceses, dentre eles o Le Monde, e em outros de todo o mundo. Publicou livros de crônicas e contos antes de estrear no romance com O caso Meursault, que teve os direitos vendidos para mais de vinte países e lhe rendeu prêmios importantes, dentre eles um vistoso Goncourt de primeiro romance.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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