Terror gulag

Entre o documento e a literatura, "Contos de Kolimá" são relatos desesperançados sobre a vida nos campos de concentração soviéticos
Varlam Chalámov, autor de “Contos de Kolimá”
31/10/2016

O escritor russo Varlam Chalámov (1907-1982) põe-se numa instigante encruzilhada nos três primeiros volumes de Contos de Kolimá, seu trabalho sobre os quase 20 anos em que viveu sob um desumano regime de trabalhos forçados na região que dá título aos livros: de um lado, o tratamento literário, em que diálogos secos se entrelaçam a uma narrativa ágil, conduz inevitavelmente o leitor a um mundo cujas regras são as da ficção; de outro, o caráter documental, às vezes com páginas inteiras intercalando reflexões sobre a existência a relatos de uma prisão submetida a menos 50º C, aponta para uma observação que pretende ser fidedigna e verossímil dos fatos. Seria possível, então, que, pendendo mais a um desses dois polos, o esforço de Chalámov redundasse em vão — ou seja, personagens e situações pintados com tintas fortes demais para serem consideradas críveis ou um desejo de análise crítica elevado demais a ponto de azedar a imersão literária, transformando-a num incômodo detalhe ou, pior, num mero panfleto político antistalinista.

Essa dubiedade permanente, antes de ser uma acusação contra Chalámov, é, na verdade, o trunfo do escritor nascido em Vólogda. Isso porque só o recurso à literatura é capaz de bordar uma tapeçaria que o relato histórico e frio dos fatos nunca conseguiria alcançar, enquanto apenas os detalhes reais da vida em Kolimá poderiam dar à narrativa aquela crueldade que o século 20 levou ao extremo e que seria, sob muitos aspectos, inconcebível à imaginação humana. Assim, Contos de Kolimá (vol. 1), A margem esquerda (vol. 2) e O artista da pá (vol. 3) acabam se tornando mais duradouros porque alimentados por essas duas forças. E juntas, elas tratam de revisitar não as agruras de um prisioneiro, mas a brutalidade e a desesperança. A completa falta de esperança está em todos os textos de todos os três livros; o brutal é seu amigo mais íntimo. Mas talvez o mais sombrio entre os volumes publicados até agora pela Editora 34, serão seis no total, seja mesmo o primeiro.

Contos de Kolimá, que traz no título o nome de todo o projeto, apresenta, já no segundo texto, a fauna mortífera da prisão: em Na fé, o bandido de carreira Naúmov perde todos os seus pertences apostados em várias rodadas de um jogo de cartas improvisado, e a saída que ele encontra para continuar jogando é tirar à força objetos dos outros; Garkunov, porém, se recusa a entregar o suéter de lã presente da família e é morto por isso. Páginas adiante, em A encomenda, o narrador recebe uma bota cara dos parentes e, com o dinheiro da venda, consegue comprar manteiga e pão para dividir com um amigo de cela; os outros prisioneiros, entretanto, surrupiam a comida mirrada depois de conseguir desacordá-lo com uma pancada na cabeça. O absurdo dessas passagens deixa perceber como os campos da Rússia stalinista nos anos 1930 estavam submetidos a essa hierarquia entre “amigos do povo”, os criminosos comuns, e “inimigos do povo”, enquadrados no famigerado artigo 58 do Código Penal russo por crimes políticos: àqueles era dado o direito de ajudar o Estado a castigar estes últimos. Chalámov era “inimigo do povo”.

Contra o Estado
E o braço sufocante do Estado é, sem dúvida, o antagonista primordial do narrador, porque é contra ele que o autor vocifera e também dele que os personagens do livro procuram se livrar, seja fingindo uma profissão nova para escapar do frio, como em Os carpinteiros, seja mutilando o próprio corpo para evitar o campo, como em Ração seca. Movida por uma canalha corrupta e destituída de empatia, a máquina estatal é palco privilegiado para as atrocidades dos homens que a operam. Elas abundam: em Apóstolo Paulo, ao saberem que o bondoso Adam Frizorguer sonhava em reencontrar a filha, oficiais mandam para ele uma carta e uma declaração da moça dizendo que, por ser ele “inimigo do povo”, não merecia reencontrá-la; em Frutinhas, Ribakov é morto a tiros quando, caçando com outros detentos frutas que brotavam do chão, ultrapassa em alguns passos os limites do campo.

As descrições dos barracões espremidos, das roupas puídas que mal protegiam do clima, da comida extremamente racionada (300 gramas de pão e duas colheres de sopa), do trabalho subterrâneo insalubre nas minas de ouro ou na quebra de pedras, do frio que congelava os cabelos durante o sono, das ameaças e humilhações formam, ainda no primeiro volume, um conjunto macabro que os outros livros, culminando na saída dele do campo, não dissipam, mas também não aprofundam.

Os textos do segundo volume, inclusive, poderiam muito bem ser igualmente repartidos pelos outros dois: entre a selvageria rascante do primeiro e as análises mais longas do último, A margem esquerda é um elemento de transição perfeitamente dispensável ou redundante se independente. Apesar disso, é lá que podemos ler Não convertido. Sem detalhes de barbaridades físicas, precisamente quando o narrador estuda para se tornar enfermeiro dentro do campo e vê no estetoscópio o símbolo de salvação, esse texto encontra ocasião para o mais eloquente aviso de que é preciso deixar esperanças pueris todo aquele que adentra os campos de Kolimá: a professora Nina Semiônovna empresta-lhe um livro do poeta Aleksandr Blok (1880-1921) e, em seguida, o Evangelho; mas o segundo é devolvido intocado pelo narrador. Chalámov escreve: “Não — falei com voz inaudível, congelado e devastado em meu interior. — Por acaso a única saída para as tragédias humanas é a religiosa?”. A professora se desconcerta.

Essa ideia antirreligiosa ou antiesperançosa toma o caminho inverso da resiliência atávica diante das adversidades que concede uma purificação iluminada, como se vê em muitos escritos de Liev Tolstói e nas obras de Alexander Soljenítsin, o mais conhecido narrador da catástrofe dos gulags e também um contemporâneo do autor. Chalámov rompe com essa tradição russa de matizes religiosos, mostrando como o estado de exceção implantado pelo socialismo real daqueles anos impedia que se nutrisse qualquer sentimento ingênuo. Meu processo é um resumo da ação dos homens em tempos violentos. O narrador recebe uma sentença de mais 10 anos naquelas terras por ter sido “denunciado” aos chefes do campo. Ele teria elogiado o exército nazista, em guerra com a Rússia depois de um período de lua de mel, e enaltecido o poeta Ivan Búnin (1870-1953), autoexilado na França após a Revolução de 1917. As denúncias, sempre com termos-chaves como “sabotagem”, “contrarrevolução”, “trotskismo”, eram a senha que o Estado esperava para montar acusações; na outra face repulsiva dessa mesma moeda, estavam os processos que iniciavam com a certeza da condenação e aguardavam apenas que se lhe encontrasse o crime mais cabível. Era, como descrito em Kombiédi, o caso de Lionka, um rapaz humilde acusado, aos 17 anos, de sabotagem por desatarraxar porcas da rede de trilhos para vender; ele aguardava, preso, até o surgimento de testemunhas acusatórias. Diante disso, a saída pela religião não seria uma verdadeira solução, mas, em verdade, um outro tipo de cárcere, em certo sentido até mais sofisticado. O sofrimento daquelas pessoas seria redimido não pelo espírito de deus, mas pelo espírito humano.

Amor ao conhecimento
A expressão desse pensamento torna-se mais clara em O artista da pá. No conto O curso, dedicam-se páginas e páginas ao aprendizado da enfermagem, aos alunos, aos professores, às aulas. Mesmo que reiteradas vezes o serviço no hospital aparecesse em textos do volume anterior, é aqui que o amor ao conhecimento cresce em importância e ocupa o papel que parece lhe estar destinado desde o início: ele é a verdadeira rota de fuga possível para emergir do inferno. Assim, o embate com o Estado podia ser feito em termos menos desiguais. Um dos heterônimos criados por Chalámov para se distanciar de si mesmo, o enfermeiro do hospital à margem esquerda do rio Kolimá Andrêiev ouve do professor Umaski em O weismannista: “O mais importante é sobreviver a Stálin. Todos os que sobreviverem a Stálin vão poder viver. Entendeu?”. Àquela altura, tendo aprendido uma profissão, sobreviver não era mais palavra de dicionário, mas ato menos improvável, e os textos do terceiro volume vão ganhando uma certa paciência para observação e para a descrição enquanto o desespero dá lugar à expectativa de uma vida — esperança nunca cabe em Kolimá. Por isso, Nos banhos relata, a um só tempo de modo íntimo e distante, o ritual de limpeza realizado algumas vezes na semana. Essa memória não deixará de doer, mas agora tem a possibilidade de ser verbalizada. “A memória dói, assim como dói a mão queimada pelo frio ao primeiro sopro do vento gelado”, afirma ele no ensaio Sobre a prosa, que serve de posfácio ao terceiro volume.

Nesse mesmo texto, aliás, Chalámov, divulgando uma espécie de carta de princípios, avança pelo tema da ambiguidade entre literatura e documento, que está sempre subjacente. Nega sua filiação ao ensaísmo (“Contos de Kolimá não tem nenhuma relação com o ensaio”), renega a literatura (“Nos Contos de Kolimá não existe uma linha, uma frase que seja ‘literária’”) e aposta na intensa relação entre o escritor e o que ele produz (“O escritor [é] um participante do drama da vida — participante de fato”). “Será que a destruição do homem, com a ajuda do Estado, não é uma questão essencial do nosso tempo, da nossa moral, impregnada na psicologia de cada família? Essa questão é muito mais importante do que o tema da guerra”, reflete. Escritos entre 1953 e 1973, os Contos de Kolimá têm vida errática. Clandestinos, só vão ser editados em 1989, com a abertura política da União Soviética, embora os países ocidentais tenham tido acesso a uma parte dos textos a partir de 1967. Dão conta de um tema, os terríveis gulags, que continua até hoje nos calabouços da história. Mais do que isso, são uma tentativa frustrada de “superação do mal”, que nem o depuro artístico consegue de fato abrandar. Não pretendem, então, resolver qualquer ambivalência ou ambiguidade, porque, como Chalámov afirma, o que ele deixa para o mundo não “é prosa de documento, mas prosa sofrida como documento”. E esse tipo de arte carrega consigo também todas as contradições e impasses da própria vida.

 

Contos de Kolimá (vol. 1)
Varlam Chalámov
Trad.: Denise Sales e Elena Vasilevich
Editora 34
303 págs.

A margem esquerda (vol. 2)
Varlam Chalámov
Trad.: Cecília Rosas
Editora 34
303 págs.
O artista da pá (vol. 3)
Varlam Chalámov
Trad.: Lucas Simone
Editora 34
421 págs.
Varlam Chalámov
Nascido em 1907, é detido pela primeira vez em 1929 imprimindo textos contra Lênin e recebe três anos como pena. Em 1937, é novamente detido e condenado a cinco anos por ser “trotskista” com recomendação de ser submetido a “trabalhos físicos pesados” em Kolimá, extremo oriental da Sibéria. De 1947 a 1949, trabalha como enfermeiro na ala cirúrgica do Hospital Central da região. Em 1951, chega ao fim a pena e é liberado. A partir de 1954 começa a escrever Contos de Kolimá, o que o consumirá até 1973. Morre em 1982 sem ver uma edição integral da obra, que só sairia na Rússia em 1989.
Alan Santiago

É revisor de textos da UFPR. Já foi repórter nos jornais Folha de S. PauloAgora São Paulo e O Povo. Publicou o livro de contos A lua de Ur num prato de terra (2009, 7Letras)

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