Tradução em Dom Quixote

Haveria algo pior que o resto: a tradução de “línguas fáceis”
28/08/2016

Não sei o que Cervantes pensava sobre tradução. Impossível saber hoje, como impossível também é traduzir seus textos. Talvez apenas Pierre Menard o saiba e o traduza. Ou talvez já nem mesmo ele.

Seja como for, pode-se tirar de Don Quijote de la Mancha algumas ideias que o protagonista do romance teria tido sobre nossa arte-ofício. Lê-se no final do capítulo LXII do volume II um diálogo entre Dom Quixote e certo tradutor, que passara ao castelhano um livro intitulado, em toscano, Le bagatele. Dom Quixote revela curiosidade pela tradução de algumas palavras do toscano para o castelhano. No diálogo, nota-se que os dois parecem compartilhar o conceito da correspondência simples e direta entre palavras dos dois idiomas. Assim, entre outros exemplos, ao toscano “più” deveria corresponder o castelhano “más”. Nada mais fácil.

Na sequência do diálogo, Dom Quixote filosofa sobre o ofício da tradução. Numa metáfora famosa, o cavaleiro andante compara o texto traduzido a uma tapeçaria vista pelo avesso, na qual “embora se vejam as figuras, são cheias de fios que as obscurecem, e não se veem com a lisura e a tez do lado direito”. É uma metáfora similar a tantas outras que se inventaram sobre a tradução, que procuram apontar para a imperfeição do texto traduzido ante o original. As mesmas figuras se veem no lado do avesso, mas ali aparecem as pontas e as folgas dos fios, distorcendo imagens e sentidos.

Dom Quixote vai além. Parece excluir de sua metáfora negativa as traduções feitas entre as “rainhas das línguas”, ou seja, o grego e o latim. Talvez quisesse significar, mais precisamente, que excluiria as traduções do grego ao latim. Outra interpretação, que parece menos provável, seria excluir da metáfora a tradução de uma das “rainhas das línguas” a outro idioma qualquer. Fico com a primeira hipótese: a tradução do grego ao latim seria realmente possível, em toda a sua inteireza. E teria real valor. O resto seria o resto.

Ainda segundo Dom Quixote, haveria algo pior que o resto: a tradução de “línguas fáceis”. Não há no texto indicação clara do que seriam “línguas fáceis”. Pode-se considerar que o português e o espanhol poderiam ser consideradas “línguas fáceis” uma em relação à outra — assim como qualquer outro par de idiomas relativamente próximos. Ou quem sabe “fáceis” sejam todas as línguas, à exceção do grego e do latim. E aí pouco importaria qual fosse a língua-fonte e qual a língua-alvo.

No caso das “línguas fáceis”, a metáfora desce alguns degraus. Não se trata mais de tapeçarias ao revés. Agora, a tradução é comparada a uma simples cópia: a cópia de um papel a outro. Nada mais que um mero ato mecânico, no qual não intervém engenho. Mas Dom Quixote relativiza um pouco, na sequência do diálogo. Talvez não quisesse ser tão duro com seu interlocutor, o tradutor do toscano: “E não por isso quero deduzir que não seja louvável esse exercício do traduzir; porque com outras coisas piores se poderia ocupar o homem, e que menos proveito lhe trouxessem”. Sempre haverá ofícios piores que o da tradução, não há dúvida.

O cavaleiro andante não deixa de excluir desse triste conceito o exercício de alguns tradutores: Cristóbal de Figueroa e Juan de Jáurigui. Esses dois personagens — históricos, aliás — merecem alto louvor de Dom Quixote: suas obras lançam dúvida sobre qual é a tradução e qual o original. Haveria maior elogio a uma tradução?

O diálogo sobre o ofício da tradução termina aqui. Segue algo sobre exemplares e dinheiros. O tradutor pensava ganhar mil ducados com a primeira impressão de seu livro, de dois mil exemplares. A tiragem não parece má, para parâmetros brasileiros de hoje. Seria apenas a primeira impressão. Os mil ducados, não sei quanto valeriam. Uma bagatela?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho