Billy Pilgrim anteviu o avesso da vida

Reduzo a imensa variedade de temas da literatura universal a um só
Ilustração: Osvalter
25/08/2016

Trinta anos atrás, quando eu ainda estava começando na literatura, um amigo bem mais velho gostava de bradar, repetindo sei lá que autor de sua predileção, que nesses cinquenta e tantos séculos de escrita toda a literatura sempre tratou de apenas dois temas: amor e morte. Em vez de dezenas de assuntos, apenas dois. Opinião radical. Mas se a proposta é mesmo radicalizar, creio que posso ir ao extremo de reduzir a imensa variedade de temas da vasta literatura universal a um só.

Nos minutos finais de seu programa de entrevistas, Provocações, o carismático e atrevido Antonio Abujamra costumava perguntar aos convidados, à queima-roupa: “Fulano, o que é…” (pausa dramática) “A VIDA?” Lembro de ouvir as respostas mais diferentes — poéticas, filosóficas, bizarras, apaixonadas, melancólicas, irreverentes, etc. — conforme variava o entrevistado. Definições são, por natureza, um resumo, uma simplificação estratégica útil em certas situações.

A definição mais curta e crua que me ocorre é: a vida é força física. Observando em volta, percebo que, onde a força física flui, promovendo movimento e conflito, a vida está presente. Onde a força física deixou de fluir, a vida foi substituída pela morte. Logo, força física e vida são a mesma coisa. Força física é, por exemplo, saúde: a potência do corpo físico, biológico. Passando do indivíduo ao coletivo, podemos falar também que força física é a saúde social, a potência de uma sociedade.

Voltando à literatura e ao jogo de redução proposto acima, afirmo que nesses cinquenta e tantos séculos de escrita toda a literatura sempre tratou de apenas um tema: força física. E desdobrando essa premissa posso dizer, com Darwin e Nietzsche, que todos os talentos e atributos humanos, incluindo a razão, o sexo e o amor, são ferramentas da força física na luta pela sobrevivência.

Fauna & flora predadoras
João Barreiros é um fantástico ficcionista português pouco conhecido entre nós. Diria até: totalmente desconhecido. Infelizmente. Seu único romance publicado aqui é A bondade dos estranhos: o Projeto Candy-Man, de 2007. Graças à falecida Tarja Editorial, tive a oportunidade de conhecer esse autor irônico e sarcástico. O épico Terrarium: um romance em mosaicos (1996), escrito a quatro mãos com Luís Filipe Silva, parece ser sua obra-prima. Não fosse a crise financeira existencial (um tipo particular de crise financeira, perene, perpétua, que só aflige escritores, artistas e similares), eu já teria importado para os trópicos esse e outros livros do autor.

Não vou resenhar A bondade dos estranhos (a edição brasileira dispensou o subtítulo, o Projeto Candy-Man). Não quero simplificar ou reduzir demais a riqueza simbólica e ideológica do romance. Citarei apenas dois pontos fortes. O primeiro é a protagonista, a adolescente Joana Mendes, vítima da má-fé maquiavélica e mefistofélica do Estado. O traço mais marcante de Joana é a insubmissão anarquista a qualquer figura de autoridade. Adoro isso. O momento atual pede esse gênero de protagonista: gente que não se curva diante do Pai, da Mãe, do Juiz, do Presidente, da Bandeira, etc.

O segundo ponto forte é de natureza ecológica. No romance, todos os ecossistemas do planeta sofreram uma mutação assustadora. Não revelarei o motivo, nem que forças transformaram nossas florestas, nossos rios e nossas plantações em verdadeiros pesadelos biológicos. Direi apenas que toda a vida vegetal e animal desenvolveu características bizarras. Lamarck e Darwin ficariam fascinados. Eu fiquei. A marcha da indústria biotecnológica e a querela — tão atual — dos alimentos transgênicos encontram em A bondade dos estranhos um reflexo inquietante.

Vamos lá: faixa bônus. O terceiro ponto interessante do romance de João Barreiros é a fabulosa linguagem dos odores, central para a trama. A bondade dos estranhos e O perfume, de Patrick Süskind (lembram?), são obras aparentadas. Joana Mendes desenvolveu, no Projeto Candy-Man, a habilidade de produzir, reconhecer e manipular os mais diferentes feromônios, divertidamente chamados de feromemes (memes odoríficos). Após a leitura dessa obra incomum, fica difícil reprimir a pergunta mais óbvia de todas: por que a maioria dos ficcionistas continua ignorando olimpicamente um de nossos preciosos sentidos, o olfato?

(Um parêntese: a capa da edição brasileira deixa muito a desejar, é simplória, não traduz a densidade tragicômica do romance, mas a capa da edição portuguesa não fica muito atrás).

No corpo e na mente: o grotesco
Santa Clara Poltergeist, cultuadíssimo romance de Fausto Fawcett, lançado em 1991, foi uma das primeiras obras literárias botocudas a apavorar os leitores não com o bizarro clássico, dos mestres do terror, do fantástico ou do surrealismo, mas com o grotesco pós-humano. No romance de Fawcett, sobre uma fauna escatológica e paranormal num Brasil-País-do-Futuro sem outra lei exceto a do ultraerotismo, as distorções poéticas e científicas potencializam uma visão infernal da engenharia genética e da convergência homem-máquina.

Um misto de repugnância e fascinação. É o que Santa Clara Poltergeist provoca no leitor. É também o que a revolução cibernética e biotecnológica ora em curso provoca nas pessoas, com seus mutantes, robôs, androides e ciborgues. Para o senso comum, o desenvolvimento da robótica, da clonagem e da neurofarmacologia e o aperfeiçoamento da conexão homem-máquina têm qualquer coisa de grotesco, no sentido que Wolfgang Kayser deu ao termo, em seu importante estudo.

O grotesco na arte e na literatura — em ficções de E. T. A. Hoffman, Poe e Kafka, em pinturas de Hieronymus Bosch e dos artistas surrealistas — reapresenta regularmente certos temas aflitivos: os autômatos e os manequins que parecem ganhar vida, humanizando-se; as pessoas que parecem perder a força vital, automatizando-se; as máscaras que se tornam elas mesmas o semblante da pessoa mascarada; os objetos inanimados subitamente tomados por um impulso diabólico; a mistura do orgânico com o mecânico, do vegetal com o animal.

Essas representações bizarras provocam, no leitor e no apreciador de arte, uma forte sensação de desconforto, ao ofenderem nossa noção mais profunda, humanista, religiosa, de pureza e perfeição físicas. Um misto de repugnância e fascinação. É o que a revolução cibernética e biotecnológica está começando a provocar na vida real, ao misturar o DNA de plantas e animais, ao acoplar dispositivos eletrônicos em corpos humanos, ao criar em laboratório novos seres vivos e máquinas tão ou mais inteligentes que nós.

Abductio ad infinitum
Mas é verdade que toda essa história de “força física na luta pela sobrevivência” pode não passar de chauvinismo humano. Talvez espécies muito mais avançadas espiritual e tecnologicamente já não saibam mais o que significam certas palavras abjetas, tipo guerra, chacina, massacre, extermínio, tortura, genocídio

O povo de Tralfamador, pra quem o tempo e o livre-arbítrio são ilusões irracionais de civilizações atrasadas, jamais se interessou pelas muitas guerras travadas na Terra. Nosso temperamento selvagem e belicista não significa nada pra um tralfamadoriano. Quando o coitado do Billy Pilgrim tenta comover sua plateia, no zoológico de Tralfamador (por favor, diga que você já leu Matadouro 5, de Kurt Vonnegut), dissertando sobre a ferocidade humana e o perigo que representamos para o universo, todos ficam apenas entediados.

Coisas da vida.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho