Contra o esquecimento

Polifonia de vozes, autoritarismo, censura e silêncios marcam "Quando o imperador era divino", de Julie Otsuka
Julie Otsuka, autora “Quando o imperador era divino”
14/08/2016

Estados Unidos, dezembro de 1941. Poucos dias depois do ataque do Japão à base norte-americana de Pearl Harbor, no Havaí, uma família nipo-americana que leva uma vida confortável em Berkeley, na Califórnia, repentinamente vê sua rotina ser desmantelada, sem nenhuma explicação. Numa noite, os agentes do FBI batem à porta e levam o pai, de chinelos e roupão, em um carro preto com destino à prisão. Com poucas notícias do pai, levado inicialmente para prestar um depoimento, a mãe e as crianças são obrigadas a deixar a casa em que viviam. A hostilidade das pessoas começa a ficar evidente, primeiro, na limitação dos horários em que japoneses e descendentes poderiam circular pelas ruas; depois, pela própria limitação dos espaços de circulação. Assinada pelo presidente Franklin Roosevelt, a Ordem Executiva 9066 começa a ser divulgada pelo país e mais de 120 mil japoneses e descendentes, agora considerados inimigos, são levados para áreas militares no interior do país, onde permaneceram presos e em precárias condições de vida por alguns anos. Isolados do mundo, tendo sua parca correspondência censurada, essa parcela da população parece ter ficado suspensa, no tempo, no espaço e na história.

Polifonia de vozes
Em seu romance de estreia, de 2002, a estadunidense Julie Otsuka reconstrói com maestria a história de milhares de japoneses que tiveram suas vidas suspensas e dilaceradas durante os anos em que ficaram aprisionadas em áreas militares durante a Segunda Guerra Mundial. Cada capítulo é narrado da perspectiva de uma personagem, construindo, assim, um coletivo de vozes que enfatiza a dimensão da violência sofrida por todas essas pessoas no território norte-americano. Essa polifonia de vozes, que parece ser uma marca da escrita elegante e concisa de Otsuka, ao mesmo tempo em que não nomeia cada uma das personagens dessa família, unindo suas histórias a esse coletivo que busca corpo em seu texto, também as individualiza ao trazer, a cada capítulo, o seu olhar sobre a mesma cena e a sua perspectiva diante da ruptura que, enquanto família e grupo étnico, elas sofrem. Mesmo sendo referida apenas como a mãe, o pai, a menina, o menino, as personagens ganham força e uma dimensão maiores na narrativa.

O movimento de serem levadas contra a vontade de suas casas deixa marcas em cada uma delas, assim como nos objetos que vão deixando para trás. O tempo para no relógio de família que eles carregam, demonstrando que nada seria capaz de restituir o tempo de vida e de dignidade que lhes foi negado. As lembranças se confundem com o tempo que deixou de passar nesses acampamentos, sem notícias do pai na prisão, sem perspectivas de sair dali, condenados ao sol quente e à poeira do deserto, à solidão de estarem presos a um lugar ao qual não pertencem. As memórias já se confundem com os sonhos, cada vez mais perdidos em meio ao frio e à neve do inverno, que soterra todas as esperanças.

Cartografia de ausências
O desaparecimento do pai é parte essencial do enredo, simbolizando outros desaparecimentos que provocaram rupturas e sofrimentos em diversas famílias. O jogo entre o coletivo e o individual enriquece a narrativa de Quando o imperador era divino.

Da imagem dos chinelos que ele calçava quando foi levado pela polícia e que assombra o menino em seus sonhos, ao par de sapatos que a criança limpa cuidadosamente durante a ausência do pai, como uma tentativa de assegurar a sua volta para uma época feliz que, pouco a pouco, perde os contornos em sua memória; à culpa que a mãe sente por ter se negado a buscar um copo d’água momentos antes de o marido ser levado, são alguns dos percursos construídos pela autora para resgatar, no texto e na construção da história, as muitas ausências que permeiam as lembranças e constituem, em si mesmas, a história que se quer contar.

Os poucos objetos levados para os campos são aqueles mais especiais ou os indispensáveis para a sobrevivência; os que ficam para trás, seja os esquecidos pela casa, seja os enterrados no jardim, como tesouros a serem encontrados anos mais tarde, revelam mais que histórias e memórias, mas a marca de uma cultura e de sua própria identidade. Como estratégia de sobrevivência, muitos tentaram ocultar ou negar suas raízes: roupas tradicionais e cartas de familiares são queimadas, a alimentação muda, assim como alguns traços da interação social. A assimilação cultural, tão desejada pelos estadunidenses, promoveu um grande silenciamento dessas vozes, resgatadas no romance de Otsuka, que busca traçar um mapa dessas ausências.

Julie Otsuka recria um dos períodos mais sombrios da história estadunidense ao retratar o envio de 120 mil japoneses para áreas militares nos Estados Unidos em 1942.

Ver e imaginar o outro
A desconfiança em relação ao comportamento e à lealdade dos japoneses e seus descendentes nos Estados Unidos descrita no livro se mostra uma temática atual, principalmente se considerarmos os conflitos e disputas em relação aos imigrantes hoje em todo o mundo. Julie Otsuka, descendente de japoneses que foram levados para esses campos militares durante a Segunda Guerra, afirmou em entrevista para a Asian Society que essa história pode ser usada de forma universal para falar sobre a situação de exílio enfrentada por diversos grupos étnicos. Além disso, a autora destaca como aprendemos pouco com o nosso passado, uma vez que essa parte da história estadunidense é raramente discutida, sendo desconhecida por grande parte da população mais jovem, como se não existira, e com grandes chances de acontecer novamente, o que para ela se tornou possível depois dos ataques de 11 de Setembro e da forma como os árabes e muçulmanos estão sendo vistos e tratados no país.

Nós ouvíamos as entrevistas no rádio. Conte-nos, soldado, perder a perna fez uma grande diferença na sua vida? Nós nos olhávamos no espelho e não gostávamos do que víamos: cabelos negros, pele amarela, olhos puxados. O rosto cruel do inimigo.

Muito além de explorar a vitimização e o sofrimento dos japoneses nos Estados Unidos, Quando o imperador era divino questiona a nossa forma de ver e imaginar o outro, principalmente em situações que fogem ao nosso controle, e nos permite refletir sobre os perigos de se conceber uma visão única sobre o outro, a partir do que ouvimos a seu respeito, generalizando comportamentos e reiterando estereótipos que só propagam a discriminação.

A infância perdida
Um dos pontos altos do romance é sem dúvida a construção das personagens que permanecem não nomeadas até o final, mas que a cada capítulo conseguem conquistar mais e mais os leitores. Como uma pintura rica em detalhes, ainda que retrate uma paisagem de forma panorâmica, ao mesmo tempo, a todo instante algo de singular surge em sua composição. O olhar das crianças, principalmente na personagem do menino, traz poesia para um texto que consegue falar do sofrimento humano sem ser piegas ou sentimental. Julie Otsuka retrata a ausência de um pai e suas implicações na vida dos filhos e da esposa; aborda a hostilidade e o estranhamento que o estrangeiro ainda desperta, além de falar de sua peculiar posição nesse contexto de deslocamento entre duas culturas; e, por fim, mostra a importância da literatura para questionar algumas histórias que circulam como sendo únicas e o poder do texto literário de dar voz a muitas vozes esquecidas e silenciadas.

Quando o imperador era divino
Julie Otsuka
Trad.: Lilian Jenkino
Grua Livros
144 págs.
Julie Otsuka
Nasceu em 1962 na Califórnia. Estudou artes na Universidade de Yale e dedicou-se à pintura durante alguns anos. Aos 30 anos, optou pela literatura. Quando o imperador era divino é seu romance de estreia, publicado em 2002. O livro recebeu os prêmios Asian American Literary e Alex da Associação Americana de Bibliotecas. Em 2004, a autora foi contemplada pela prestigiosa bolsa da Fundação Guggenheim. O Buda no sótão, seu segundo romance, também publicado pela Grua, recebeu diversos prêmios, dentre os quais o PEN/Faulkner de Literatura de 2012, além de ser finalista no National Book Award. Seus livros foram traduzidos para mais de vinte idiomas.
Paula Dutra

É professora, tradutora e doutora em Literatura pela UnB.

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