Começos que definem uma narrativa (1)

Como o bom início de um romance é fundamental para o restante da narrativa
A escritora Alba de Céspedes
29/07/2016

Mãos de freira: foi isso o que eu notei, primeiramente, nela — à minha frente, assinando um cheque. Meus olhos observam mãos, antes de subir para o colo e para rosto de mulheres que se debruçam sobre o apoio exíguo diante do guichê protegido pelo vidro com um buraco recortado onde os olhos às vezes estão focados e, às vezes, não.

Mãos de freira por quê? Mãos de freiras são um pouco nodosas e não guardam lembrança de certos cuidados mundanos, por exemplo. Costumam ter uns anéis simples, feios, que só fazem recordar severidades de Deus, e não reflexos dúbios de algum espelho diante do qual uma mulher se embeleza de cosméticos e enfeites. Então, as dela eram mãos de freira — e seu rosto (levantei os olhos, agora o vejo) era também limpo, lavado, embora os olhos fossem de fogo não apagado, não vencido pela água da monotonia.

Peguei e paguei o cheque, sem conferir (o saldo, a assinatura), era um cheque pequeno, mas isso não se faz no meu trabalho, eu poderia ter prejuízo, até ser alertado, mais tarde, pelo olhar atento do chefe dos caixas e, um dia, demitido por mais aquilo, porém paguei, ela pegou no dinheiro com as mãos de freira e sumiu da minha vista.

Foi assim que começou.

Este início de O anelante de Valverde, de Alba de Céspedes, nos pega poderosamente para dentro do livro — estranho — sobre o bancário cubano que é páreo para aquele obsessivo personagem de O túnel, a obra-prima de Ernesto Sabato. Este, também começa impactante, com a confissão (de partida) do crime, do fim trágico dessa novela escrita “a partir de uma subjetividade total”, segundo o injustiçado autor argentino que Borges obnubilou (ainda se usa essa palavra?), físico que poderia ter sido um misterioso “autor lateral”, etc.

Mas prefiro essa pintura do começo do romance de Céspedes, e acho que os dois livros guardam certa semelhança na alucinação — alucinação? — ou na perseguição de uma sombra que se torna o centro enigmático da narrativa, o eixo de um acontecimento tratado como quase uma banalidade, inicialmente, mas que cresce rumo à severa desordem a que o título uma alusão tão indireta que é difícil entender por que Alba diz, numa entrevista, que, se houvesse algum tipo de explicação bidimensional para o seu livro, estaria na “clareza do título”, como se O anelante de Valverde fosse algo inteligível (não considero que seja) para quem observasse, do outro lado da calçada, na chuva, as antigas vitrines — “montras”, em Portugal — das livrarias que expunham livros e não “novidades”, não produtos recém-escritos para o consumo, nessa aposta doida que se está fazendo por conhecer os novos Villa-Matas, que se escreve com um ele só, Fernando.

Bem, deixo para a Priscilla Campos tudo que se refere a ele, o Vila — e volto à Céspedes que me faz penetrar no corpo estranho de uma narrativa feita só de suspensões, costurada entre 13 capítulos que não trazem sorte para quem for comprar O anelante como se fosse a descrição de “um amor louco” — conforme se lê na orelha escrita pelo jovem Vargas Llosa, um escritor que eu detesto (e que quase me faz não ler o romance de Alba de Céspedes).

Atualmente, leio poucos romances — feliz ou infelizmente. Devo confessar que, nos últimos anos, fui criando uma espécie de desconfiança, de receio de perder minhas horas entregues à imaginação alheia de repente revelando-se inspirada por “truques”, quando não pela monotonia da ficção “sociológica” que hoje se pratica mundialmente. Se querem saber de uma narrativa que está no extremo oposto disso, é esse livro da cubana descendente de dois Céspedes que se tornaram presidentes de Cuba, em 1856 e 1933 (respectivamente o avô e o pai de Alba), distinguida com o Prêmio Rómulo Gallegos com inteira justiça exatamente por esse título*.

* O Prêmio Rómulo Gallegos — considerado o Nobel de Literatura da América do Sul — é outorgado pela Venezuela desde 1967. Durante 25 anos, foi conferido (a um romance julgado “o mais bem escrito”) a cada cinco anos, período que foi reduzido para dois, a partir de 1989. São contempladas obras de escritores de todos os países latino-americanos de língua espanhola, além da Espanha e das Filipinas. Como o prêmio sueco, consiste em medalha, diploma e uma quantia em dinheiro (aproximadamente de 25 mil dólares, em bolívares). Em 1967, foi concedido a Mario Vargas Llosa, pelo romance A casa verde; em 1972, o ganhador foi Gabriel García Márquez, por Cem anos de solidão, e, em 1977, foi escolhido o romance Terra nostra, de Carlos Fuentes, fazendo-se uma grande injustiça a Augusto Roa Bastos, autor de Eu, o supremo. Cinco anos depois, O anelante de Valverde foi a última novela escolhida no prazo da periodicidade inicial. A partir de então, os júris do “Gallegos” escolheram Los perros del paraíso, de Abel Posse (1987); La casa de las dos Palmas, de Manuel Mejía Vallejo (1989); La visita en el tiempo, de Arturo Uslar Pietri (1991); Santo Oficio de la Memoria, de Mempo Giardinelli (1993); Mañana en la batalla piensa en mí, de Javier Marías (1995); Mal de amores (1997). Los detectives salvages, de Roberto Bolaño (1999); e El viaje vertical, de Enrique Vila-Matas (2001).

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho