O direito ao silêncio

Charles Kiefer: "No que já escrevi, jamais policiei os assuntos. E se ainda vier a escrever, não censurarei nenhum assunto."
Charles Kiefer, autor de “Para ser escritor”
27/07/2016

Charles Kiefer, por ora, abandonou a literatura. Não sabe se voltará a escrever ficção. “Como eu vivo hoje em absoluta plenitude, não escrevo mais”, afirma. A decisão se deve à Experiência de Quase Morte após sofrer uma parada cardiorrespiratória. Nascido em Três de Maio (RS), em 1958, Kiefer garante que um “um dia produtivo para mim, hoje, é o dia em que posso dizer que fiz diferença para alguém. Para um desconhecido, um amigo, um mendigo, um aluno ou aluna. Não vivo mais voltado só para o meu umbigo”. Escrever está em segundo plano.

Kiefer estreou na literatura em 1982, com Caminhando na chuva. Tem mais de 30 livros publicados. Sua obra está publicada na França e em Portugal. Entre os prêmios recebidos, destacam-se o Jabuti (três vezes) e o Afonso Arinos (da ABL). Além de ministrar oficinas particulares de criação literária, Kiefer é professor da PUCRS.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Aos cinco anos de idade, fiz uma poesia, que a minha mãe registrou num papel pardo, de embrulhar pão. Quando fiz 50 anos, ela me deu o papelote de presente. Acho que nasci escritor. Não lembro de um único dia em que escrever e ser escritor não estivessem comigo.

Quais são suas manias e obsessões literárias?
Escrever, inicialmente, à mão e depois passar para a máquina de escrever. E, nas últimas décadas, passar para o processador de texto. Minha grande obsessão literária sempre foi a Bíblia. Leio-a desde menino. Mas só descobri que a Torah (cinco primeiros livros) tem quatro níveis (pashut, remmez, dresh e sod) depois que sofri uma parada cardiorrespiratória. Lá, naquele espaço que os vivos não conhecem, fui instruído a respeito da “alma da Torah”. Hoje, além das oficinas literárias particulares e das aulas de literatura na PUC, ensino o que recebi, a Chochmá Nistará, Sabedoria Secreta.

Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
A Torah, o Sefer Ha Zohar (O Livro do Esplendor), os 40 livros de Isaac Luria, os livros de Baal Ha Sulam, e os livros de Michael Laitman.

Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?
O comentário Sulam, de Baal Ha Sulam, a respeito do Zohar, na edição em 23 volumes. Se a Dilma se tornasse cabalista, ela receberia o Chotem de Partzuf de Nukva. Com isso, ela não poderia ser enganada. Além de que teria a sua própria alma corrigida.

Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Solidão, angústia, tristeza, e tempo ocioso. Como eu vivo hoje em absoluta plenitude, não escrevo mais. Não sei se ainda voltarei a escrever ficção. Talvez poesia. Ensaios, sim, porque preciso pontuar no meu Curriculum Lattes para não perder o emprego!

Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Um dia de chuva, ou um dia frio, um copo de vinho, fogo na lareira ou um lençol térmico. Coisas muito comuns aqui, no Sul. Agora mesmo estou digitando na cama, sobre um lençol aquecido, pois a temperatura está perto de zero.

O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando eu ainda escrevia quase todos os dias, meia página. Hoje, perdi essa referência. Um dia produtivo para mim, hoje, é o dia em que posso dizer que fiz diferença para alguém. Para um desconhecido, um amigo, um mendigo, um aluno ou aluna. Não vivo mais voltado só para o meu umbigo.

O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Reescrever, retocar, rasgar o que escrevi. Essa consciência de que o que foi escrito precisa ser refeito, retocado ou destruído é muito pedagógico. Se o que escrevo não soa como música, não vale a pena. Para que atazanar a mente do leitor com cacofonias?

Qual o maior inimigo de um escritor?
Levei muito tempo para entender que toda a literatura do mundo não vale um gesto de afeto, de bondade, de carinho. Passar um dia na companhia da esposa, passar um dia brincando com um filho, uma filha, um neto ou uma neta pesam mais que todas as bibliotecas. Um dia, num programa de entrevistas de TV, perguntei ao Carlos Heitor Cony por que ele havia passado 23 anos sem escrever. Respondeu-me: “Porque encontrei uma mulher que me amou”. Agora, Cony, eu também entendi.

O que mais lhe incomoda no meio literário?
Tudo. Mas talvez mais que tudo a soberba, a falsidade, a pose, o egocentrismo, a falta de solidariedade.

Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
São tantos. Dorothy Parker, que o Brasil nunca leu como deveria. Tomazzo de Lampedusa. Baricco. Ah, são tantos, tantos. Como eu disse em outra entrevista, quanto melhor a literatura, menos leitores ela tem. Viramos uma horda de bárbaros. Se é que alguma vez deixamos de sê-lo.

Um livro imprescindível e um descartável.
Ficciones, de Jorge Luis Borges. Abstenho-me de citar qualquer um dos livros que compõem a biblioteca de babel da literatura de massa.

Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Qualquer defeito no campo do eixo dos meios expressivos (linguagem) e no campo do eixo dos procedimentos construtivos. Em meu livro Para ser escritor, há um ensaio sobre isso, que se chama A má literatura.

Que assunto nunca entraria em sua literatura?
No que já escrevi, jamais policiei os assuntos. E se ainda vier a escrever, não censurarei nenhum assunto.

Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Vou plagiar o Picasso: “Sempre que a Inspiração bateu lá em casa, encontrou-me trabalhando”.

Quando a inspiração não vem…
Ela não precisa vir, nunca dependi dela. Dou uma atividade aos alunos de Escrita Criativa, na PUC, que chamo de Exercício das palavras aleatórias. Solicito a sete ouoito alunos que digam a primeira palavra que lhes vem à mente. E vou escrevendo essas palavras no quadro. Depois, solicito que eles procurem conexões entre as palavras, porque elas são seres vivos, pulsantes. Em poucos minutos, eles escrevem contos, crônicas e poemas a partir das palavras aleatórias. Das sete ou oito palavras, eles podem ignorar duas ou três. Um desses alunos ganhou um concurso internacional de poesias com o resultado desse exercício. Foi passar 15 dias no Canadá, em hotel de luxo, com a mãe.

Como eu vivo hoje em absoluta plenitude, não escrevo mais. Não sei se ainda voltarei a escrever ficção.

Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Franz Kafka. E iríamos falar sobre Kabbalah. Aliás, encontrei um conto inédito, dele, escondido no meio de seus diários. Traduzi e publiquei aqui no jornal O Correio do Povo. Se vocês quiserem, podemos republicar o conto aí. Vale a pena. Somente o título do conto é meu. Chamei-o de Tinok Shenishbá, que significa “Estudante atrapalhado”.

O que é um bom leitor?
Acabei de escrever um texto sobre isso para a Revista da PUC. Bom leitor é aquele que sabe degustar o texto como se degusta o vinho.

O que te dá medo?
Nada. Para quem já morreu (EQM), ou como se chama cientificamente, para quem teve uma Experiência de Quase Morte, nenhum tipo de medo existe. Tudo, absolutamente tudo, é o mais perfeito e puro amor do Criador pelas Suas criaturas. A Maschom (Barreira) é que nos impede de sabermos disso.

O que te faz feliz?
Tudo. A pia que goteja. A filha mais nova que espirra. A esposa que se enrosca, buscando calor. As cachorras, que fazem cabo-de-guerra, e que são mais felizes que os seres humanos. O neto e a neta. A filha mais velha. O genro. Os irmãos e a irmã. Os pais. As infinitas possibilidades que se desdobram e se multiplicam em outras infinitas possibilidades a cada instante.

Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A de que não estamos sozinhos, nunca estivemos. E se em algum momento nos sentimos sozinhos, foi porque o nosso ego se concentrou apenas no próprio umbigo.

Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Escrever o melhor que posso. O inferno da literatura está lotado de boas intenções e bom mocismo. Literatura não é política. Não é religião (nada derramou mais sangue do que as religiões). Não é psicologia. Literatura é literatura, de littera. Letras e palavras são energias vivificantes. Amoras silvestres, córrego de águas limpas. Bruma. Vapor. Ruach. Espírito.

A literatura tem alguma obrigação?
Nenhuma. A literatura tem todos os direitos, inclusive o direito de não dizer nada, de não fazer sentido, de silenciar completamente.

Qual o limite da ficção?
Ficção vem de fingus, finx, fingere. O fingimento pode ter limite? Se nem a realidade tem limites, que se estendem ao Ein Sof, Sem Fim, por que imporíamos limites à ficção? Uma vida não basta ser vivida, é necessário também que seja sonhada. Goethe? Mario Quintana? Tanto faz. Há milhares de anos plagiamos uns aos outros. Quem copia de um, é plagiador. De vários, é pesquisador.

Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Não tenho líderes.

O que você espera da eternidade?
Já estou na eternidade. E posso garantir que é muito aprazível.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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